para os meus críticos

Data 11/11/2008 17:17:37 | Tópico: Poemas

escreveu o último parágrafro e logo tombou
como retalho de um retalho
átomo separado em chão vazio
ou então: orquestra espalhada pelo chão

o romancista exerceu a força bruta de pensar
lançou um cosmo e perdeu-lhe o rasto
a ponta da linha para afiar as horas umas nas outras
agora sofre
como o vinho parado
adquirindo a cor do céu da boca de um pássaro malvado
inflamando os dedos no teclado morto
auto-inflamando melhor dizer

rato que não tem por aonde sair
acaba por falecer de dor
cântaro que não sonha perde a asa
a morte é uma imagem que cega

escreve
escreve e soma desamores em cada linha
risca e
desarisca
dá um grito e chama pela mãe gorda
pede a guloseima numa bandeja fria
o texto pede que se mate
que se viole
o romancista treme
seus molares aparafusam-se letalmente
experimenta a violência em demonstração do Demo
as personagens ficam mal calculadas
carunchosas
ao terror das bússolas
sem identidade molecular

trocam-se os corações mantêm-se as cabeças


de capítulo em capítulo vai ressuscitando o peito
estala a castanha no fogo do pensamento
e o seu sorriso é de limar arestas

o escritor é vago quando sofre?

a cada dia quinze páginas condensa o beco
rameiras de sexos nas mãos como pedintes
resolve por ironia castrar o sol por falta de milagre
torna-se convexo passional
gelado na nuca
terrífico nas pontas dos dedos
alma muscular sem antídoto para nada
tela mal projectada na íris
ideias lamacentas para laboratório

falhou-lhe o pátio
o degrau que subia
rosas empinadas
pequenas castrações no sangue

vai esmorecendo em cada sílaba
cinzas de tabaco habitam nos poros
o romance perde-se no bosque que inventou
o sangue circula como vara
às duas da manhã entra a ópera nos ouvidos
ouves?

os animais amam-se selváticamente
sem palavras de poesia
no edredon da corte
a resina do mau odor ataca
o romancista sua o ópio que não opiou
está prestes a terminar o livro
as fendas são carneiros ao ataque
a palavra Fim demora-se
como eu quando tomei como amor uma rosa branca
o homem rói a contra-capa
estupidifica-se a olhá-la
chora porque não há virtude em ser homem
o barro mal se segura nas magníficas entranhas da solidão

devemos não ter deveres
a criação é um coito
se escreveres luz terás o sol
se escreveres morte terás abutres sobrevoando
ejaculando
sobre as palavras:
chão.
esterco.
dogma.
futuro.
o que dói é o pântano a subir pescoço acima
não sei de que ano é o mar
nem importa se o vento levanta a saia à desventura
entre o verso e a dor morre uma andorinha

o escritor advém da sua invenção
é um elemento apavorado
a levitação é só depois do primeiro sono
conduz as palavras com chicote
quer um fim desejado
à base tiros
sem inquéritos
com interrogações a doer os ossos
pensa numa palavra feliz
olha o sol encorpado pela primeira vez
as horas são burlas
o momento é de gravitação nos ovários da nascente
o sangue ultrapassou os pinheiros altos
tornou-se seco
tão seco como o louco que se emborracha
é hora de dormir
trincar a língua pagã
os seios da madrugada ao rubro
que linda é a noite quando se levanta o tampo!
o seu sexo brilha: diamante original
apetece fornicar até a mais pequena cigarra

o escritor bebe e mija ao relento contra o tempo
é hora de dormir no iodo da loucura
era preciso falar sobre os homens
na masterização do poente
salvou-se
na cega luz do poema-mãe
desenhou um Xis no peito com uma navalha



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