Guarda-me III

Data 30/04/2007 16:32:17 | Tópico: Contos -> Romance

Quando soube da tua morte quis morrer também, inexplicavelmente dentro de mim se soltou o desejo de ver a minha vida terminar, soube então que a razão de toda a minha existência se resumia indubitavelmente à tua. Senti em mim um tumulto de emoções descontroladas, arrefeci, enlouqueci, o vazio endoideceu-me…
O telefone tocou e o meu coração quase me saltava do peito, vim do jardim até à sala com muito custo, se soubesses como me dói a perna esquerda, desde aquele tombo que dei quando tentava novas proezas em mergulhos para o rio, atendi com a voz ofegante, esperava do outro lado uma notícia triste até o tempo o fazia antever, chuva ligeira, muita, a tua mãe falou-me com a distância habitual mas soube pela forma doce com que falava que as lágrimas lhe corriam pelo rosto, até porque os soluços eram uma constante. “Ela iria gostar que viesses!”, disse ela enquanto eu já deixava o auscultador cair sobre o meu colo e de olhos esbugalhados deixava sem pestanejar que um oceano percorresse os traços do meu rosto.
Subi as escadas da velha casa, entrei no quarto e deitei-me sobre a cama, deixei-me invadir pelas recordações que caiam em vertigem pela minha memória, foram tantos dias, tantas horas, toda uma vida dedicada a amar-te sob todas as coisas, para o bem e para o mal, toda uma vida deste amor puro e doce que me inunda o peito e o olhar. Levantei-me, peguei na mochila, desci as escadas mirando o tempo moribundo que a rua tinha de suportar, peguei numa caneta e escrevi na porta do frigorífico umas palavras. “Fui, para ali, de onde nunca deveria ter saído. Beijo.”…
Meti-me no carro e conduzi até as pestanas não mais se aguentarem firmes, encostei e dormitei, sonhei contigo minha querida, sonhei com a nossa primeira noite de amor, quase consegui tocar esse filho tão nosso que sabia no teu ventre mesmo antes de nos deitarmos sobre a erva tenra do campo.


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