"Eu sou a simplicidade"

Data 14/02/2009 17:07:48 | Tópico: Acrósticos

Vê-la caminhar de pés descalços sobre a rua lamacenta é algo que me reconforta.
Traz posto um vestido branco de algodão, fino e discreto, que se assemelha a um grande e liso lençol. Ela não se importa com a chuva que encharca os seus finos ombros, ao contrário dos demais que enchem Lisboa, barafustando contra o tempo sem tempo, enquanto se atropelam uns aos outros, fartos da chuva e de si mesmos. Tapam o rosto com os chapéus-de-chuva, a alma com a hipocrisia.
Ela não. Vai caminhando lentamente, alheia aos berros e à chuva intrometida; sem pressa, mas de passo graciosamente decidido, como se já soubesse de véspera a pedra da calçada que iria pisar. Caminha sem esforço, dos seus olhos correm lágrimas, da sua boca nasce um sorriso e ela, vivendo a sua própria existência, continua.
E caminha.
Os bancos ferrugentos cravados no jardim abandonado emanam agora um cheiro a Primavera, a flores esquecidas e ingénuas, ao invés do cheiro de inverno cansado e sujo que neles habitava antes de ela lá se sentar, meditando e sorrindo, vendo a vida com a graça que ela tem.
Tem mil anos de existência, mas não se parece importar com as rugas vincadas na sua pele frágil. Tem os olhos cansados de tudo o que já viu, e mesmo assim, ainda expectantes de um outro lado – o melhor, o puro, o belo.
E caminha.
Pisa a areia da praia como que pela primeira vez. As ondas tenebrosas do mar escuro curvam-se perante si, em sinal de respeito, ficando depois reduzidas a pequenas gotas de espuma, que a areia absorve, da mesma maneira que ela absorve o cheiro do mar. O vento, que serve de música para a dança ritmada das velhas árvores, envolve-a num turbilhão de cores e toques, beija-lhe a face com a mesma doçura de uma criança. Ela sente e respira. Inspira tudo o que a vida lhe dá, expirando depois tudo aquilo que da vida não guardou. Enterra as recordações na areia, na profunda humidade da Terra, esperando os segundos até que sejam embaladas pelo sal das gotas de água. Vira as costas, dá um passo.
E caminha.
Vem despedir-se de mim. Eu, que sempre me escondi atrás da Natureza que tanto a respeita, fui agora olhada por ela, com aqueles olhos doces e saudosos que nunca quis enfrentar. Disposta a tudo agora, deixo-me envolver num abraço familiar que, mais uma vez, dissipa a chuva e convida os tímidos raios de sol.
- Quem és tu, que tanto significas? – pergunto.
Numa voz suave e fugitiva, oiço:
- Eu sou a Simplicidade. Um pouco mais envelhecida talvez, mas nunca consegui ter o dom de parar o relógio. Os minutos transformados em dias que depois foram abraçados pelos anos foram desfilando ao meu lado, numa linda procissão. Eu? Eu fui transformando o pior no mais belo, o mais complexo no mais puro. A simplicidade das coisas difíceis está nos olhos com que as olhamos, na mão com que lhes tocamos. Abraço-te agora na esperança que consigas ser única, que ames, que deixes voar os teus pensamentos como estes meus fracos cabelos esvoaçam com o vento. Deixa nascer na vida as coisas mais simples – as que já conheces e as que nunca imaginaste. Sê livre. Simplesmente livre.

Ver-te caminhar foi talvez das coisas mais simples que já vi. Foi também das mais belas a que assisti. Não choro, tentando sorrir. Só que sorrir tornou-se hoje um bocadinho mais complexo do que imaginava.

(Para a minha Avó Materna)



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