Data 16/02/2009 23:54:15 | Tópico: Poemas


um caminho sob esta bengala
sob a palavra bengala
nunca o vi
sequer uma silhueta
na densidade da noite
ou uma miragem
no deserto dos dias

marca o ponto
manuel

mas sinto-o
sinto-o preso
como pó ao meu corpo

e caminho
mesmo estando aqui
parado
a olhar para a máquina
anotando números

tome bem atenção
aos parâmetros

a máquina
não é a minha vida
mas cumpre
a sua função de fazer
o que me leva

mas não leva

o pão à mesa

a sopa
manuel
come a sopa que arrefece


um caminho sob esta bengala

quero escrevê-la

a palavra bengala
sob a qual há um caminho

deixá-la para a eternidade
num papel
o mesmo
que arde agora na lareira

o fogo lambe-lhe a face
não a face do papel
a face
da palavra bengala
sob a qual sinto o caminho

e vou com o fogo
o fumo
não vou com a cinza

essa não me interessa

viu bem os parâmetros
escuto

como vou escutar
amanhã

marca o ponto
manuel

amanhã
mas amanhã há greve

faço
não faço

e vou com o fumo

estou lá fora
e o caminho
que há sob a bengala
sob a palavra bengala
é nítido

não por o ver
nunca o vi
mas porque o sinto

e vou

gostava de ir para além
da ionosfera

tenho esse direito
o direito ao sonho

digo

gostava de ir para além
da ionosfera

dispo-me
deito-me
levanto-me
visto-me

há uma chávena que me aguarda
aquece-me as mãos

mas uma urgência
um horário
um autocarro que arranca
e eu lá dentro
sentado
ou em pé
e eu lá dentro vou
mas não vou pelo caminho

a recordação da chávena
do calor da chávena
adormece
morreu
perguntaria se soubesse
que as mãos
as minhas próprias mãos
desejavam de volta o seu calor

mas não vou pelo caminho
que sob a bengala
a palavra bengala

a mesma a quem o fogo lambe a face

repito
gostava de ir para além
da ionosfera

à porta da fábrica
o autocarro pára

gostava de ir além

o piquete está montado
à porta da fábrica

fura-greves
escuto

gostava de ir

a bengala
sob a qual há um caminho

gostava

diz-me
sussurra-me do caminho
que não vejo
mas sinto

e entro na fábrica deserta
um deserto sem oásis
sem miragens

marca o ponto
manuel

e os cartazes lá fora
as vozes lá fora

comi sopa ontem
tenho fome
não marco o ponto
que me marca
quando escuto

marca o ponto
manuel

e saio

o papel arde na lareira
lambe o fogo
a face
da palavra bengala

tens de te sentir
feliz porque trabalhas

escuto

é impossível ser feliz
sem ter o pão
resta-me o suor


um caminho
sob a bengala

sinto-o e sentindo-o
tomo dele posse

é meu o caminho
e esta é a minha voz
a voz que agora escuto

gostava de ir para além
da ionosfera

o papel arde
rente à palavra bengala

mas pouco importa que arda
que qualquer outra voz diga

marca o ponto
manuel

que pergunte

viu bem os parâmetros

já não preciso
da palavra bengala
para saber que há caminho

o caminho sou eu



Xavier Zarco
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