Está na hora de sair da idade média

Data 24/02/2009 15:57:33 | Tópico: Crónicas

Está na hora de sair da Idade Média. (Meu velório)

Caros amigos:
Hoje falaremos de um assunto que muitos não gostam de falar nem de ouvir, mas infelizmente não tem como negarmos o acontecimento mais justo da Terra, que é a morte (para os que não têm fé). Hoje falarei do meu desencarne.
Sou livre e crente em Deus, não acredito em Adão e Eva, Papai Noel e demônios. Gostaria de tornar público as principais das últimas vontades para que a minha família possa se sentir à vontade, quando ao praticá-las não causar espanto aos meus amigos.
A maioria da população já tem conhecimento e sabe que tenho duas urnas que foram compradas há 15 anos: uma para mim e outra para minha esposa e que estavam guardadas aqui na minha casa. Preocupado com carunchos achei melhor fazer um acordo com Luiz, dono da funerária “Cruzeiro do sul”, levando-as para lá para que fossem vendidas. A partir daí passou a ser o fiel depositário de duas urnas de igual valor, inclusive hoje por um excesso de zelo é meu vizinho de parede com a sua empresa para o meu melhor conforto.
Deixo público e peço que após o meu desencarne algumas observações sejam respeitadas:
Gostaria muitíssimo Sr. Luiz, que não me enfiasse algodão no nariz e muito menos pela boca e goela abaixo, pois só de pensar em algodão já começo a me arrepiar. Para não ter que amarrar como antigamente o queixo com aquela tira de pano que dava a impressão que o defunto estava com cachumba, sugiro e peço que cole com super bond a arcada dentária superior na inferior, aí quero ver o queixo cair!
Se na época eu estiver usando barba, somente um acerto, se estiver apenas de bigode que o deixe.
Que seja colocado em meu rosto óculos escuros - podem ser daqueles de camelô bem baratinhos para que eu não fique com aquela cara de defunto e deixe uma lembrança mais agradável aos meus familiares e amigos.
Um lembrete importante: não encha a minha urna de flores, porque não tem nada que combine menos com defunto do que flores, além do cheiro desagradável que fica por todo o ambiente. De preferência uma boa flagrância pelo corpo. Velas nem pensar! Não quero que transforme um momento tão sublime para meu espírito, naquele ambiente nefasto, sombrio, angustiante; pessoas cochichando umas com as outras, como que se o defunto estivesse com dor de ouvido. Nada disso! Pelo amor em Deus. Sei realmente que algumas pessoas por alguns dias, serão hipócritas, dirão que me adoravam que foi uma perda irreparável,... dirão com certeza também assim: é! Ele tinha as suas manias,... era sistemático,... mas era uma pessoa muito boa. Já estou rindo desde agora, mas é só por alguns dias esse fingimento, pois logo tudo volta ao normal. E assim deve ser.
O mais estranho e polêmico é que eu não quero a urna sobre aqueles cavaletes cromados; corpo estendido de terno preto, braços cruzados em cima do peito causando aquela terrível feição de morto, que consterna a todos. Cria ao mesmo tempo uma paisagem melancólica onde muitas crianças ficam impressionadas e a maioria dos presentes fica com mais cara de defunto do que o próprio desencarnado. Afora àqueles que ficam pelos corredores com cara de vítima e adoram tirar proveito no constrangedor e dramático ambiente criado, felicíssimos por receberem de algum desinformado os pêsames, como se fossem da família. Quero uma camiseta comum, calça zurrada, sapatos velhos de preferência. Acho um pecado equipar defunto com roupa nova. A urna deverá ser encostada na parede mais ou menos 45 graus de forma que não caia, quero ser velado de pé. Luizinho se vira, me amarre ou me pendure dentro da urna o problema é seu.
Perfeito! Não quero ser velado em minha casa e sim no Velório Público. Primeiro porque é um vai-e-vem de pessoas que eu nunca vi na vida, mas que entram pra quarto, socam pra banheiro, vão pra cozinha, tal de café com bolo e biscoitinhos sem parar,... além do sacrifício de pessoas bondosas e bem intencionadas que acabam se preocupando em fazer sopa para os familiares que deslocaram de outras cidades. É o verdadeiro resguardo coletivo. Portanto, não quero que telefone pra ninguém antes do enterro, somente após o encerramento é que desejo que façam a comunicação para os meus amigos distantes, o deslocamento deles em nada vai mudar o quadro a não ser a despesa que teriam inesperadamente apenas para pajear defunto. No velório nada de tristeza, quero fisionomias alegres e sorridentes contando casos, é claro que serei o ícone dessas conversas sem dúvida nenhuma. Quero esses bagulhinhos de aniversários tais como: coxinhas, empadas, refrigerantes, poderá ter até uma cervejinha, o problema são aqueles mais entusiasmados que não tardariam a fazer as cômicas declarações de amor pela amizade.
Se o desencarne ocorrer na parte da tarde, tudo combinado: levar para o Velório, colocar a urna conforme solicitado acima. Na igreja não precisa passar, porque se tive uma existência inteira para me preparar não será uma água benta que me fará melhor, pois me preparo todos os dias para esse retorno triunfal, e o que vale nesta hora são as virtudes praticadas existentes em nosso coração durante a vida carnal. Ah! Tem uma coisa que não pode acontecer, não deixe que ninguém puxe o terço de reza, pelo amor de Deus, senão quebrará o colorido festivo daquele dia, pois o que eu quero é só alegria! Descontração será a tônica do ambiente. Uma coisa também não pode ser esquecida em hipótese nenhuma: as vinte e uma horas impreterivelmente quero que o Sr. Luiz despeça todo mundo, inclusive todos os familiares, feche as portas do Velório e mande todos para casa, para que descansem, guarde o defunto, e só reabra no outro dia depois do almoço. Pois não existe nada mais trágico, cansativo, hipócrita e sem lógica que familiares passarem uma noite inteira debruçado em cima de uma urna alisando e vigiando cadáver.
Não quero que comprem gaveta alguma em cemitério; nada de pompas. Coloquem-me juntamente dos indigentes. Guardem-me apenas na lembrança e evitem o choro de lamento, que só causaria atraso ao meu espírito agora liberto dos grilhões da carne. Nada de Missa de Sétimo dia, apenas uma oração pelos amigos sempre que puderem. Sorriam, pois venci a missão. Se um dia estiver em condição e permissão para ajudar alguém do alto ajudarei, mas não insista pedindo ajuda pra minh`alma, por favor!
Como as urnas já estão pagas e não terá flores, velas, suportes cromados, muito pouco algodão, apenas a gasolina e o super bond para travar o queixo, e uma rápida ajeitada no corpo, duvido muito que o meu amigo, Sr. Luiz da funerária após uma propaganda dessa, terá coragem de apresentar à família enlutada qualquer débito relativo ao feito. Se porventura alguma taxa existir a ser paga à prefeitura que seja debitada à Câmara Municipal o respectivo valor, aos amigos que tanto gostam de mim e a todos fico obrigado.

O autor é advogado e seu e-mail é: antonioantunesalmeida@hotmailcom



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