como se faz um poeta (parte dois)
Vinde a mim com coragem, atirai-me toda a vossa cólera, fome, desgraças, doenças raras e outras negações
Atirem-me para o lado mais negro da vida e soltem os caninos a sorrir Atirem-me à cara a Língua Portuguesa, a gramática inteira, enciclopédias, S. Ciprianos, e que o poema me saia num vómito e a minha alma se magnifique com o estrondo!
Ó palavras minhas, como vos hei-de entender se eu próprio me perdi na origem? Ó palavras humanas, tão cheias de carne, como pegar na caneta sem me aterrorizar?
Sempre ouvi dizer que o poeta tem de sofrer que em cada verso o chão treme e sisma em enlouquecer por isso abram portas às colmeias quando eu por lá passar!
Fazer um poema como se faz um filho à mulher amada diante do altar não é pecado; já muitos me vieram contar ...mas a mim falta-me o à-vontade.
A inspiração é um redemoinho sempre ligado à cabeça, torna-nos loucos, a ganhar ramagem entre os dentes e os dedos. Pergunto: como fazer um poema sem perder a erecção? Como dizer ao mundo que sou poeta se nunca chupei a teta à poesia?
Ó palavras altas, ardentes, tesas, vinde com trinta olhos, trinta sóis apontados, tenho o compromisso de terminar este poema a minha morte é já acolá E ainda tenho uma estrela para devorar Preciso de escurecer, tenho pássaros e peixes algures entre os rins e o coração, que, se lhes faltar o pasto, ó meu deus, se lhes faltar o pasto, ficarei entregue e exposto ao mundo das coisas, apostando tudo numa última reza.
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