««Para o pai que não tive««

Data 18/03/2009 14:49:16 | Tópico: Mensagens



Pai
Será que te lembras, será que te corre no sangue a saudade imensa do que não houve,
será que nos teus cabelos brancos cresceram arestas de arrependimento.
Porque sabes há muito que te perdoei, nas lágrimas que chorei, nos medos com que lutei.
E depois penso, como teria sido as nossas vidas se me tivesses chamado filha, será que me tinha agarrado a esta escrita desnorteada, que me transporta nas ilusões perdidas, aquelas que perdi quando percebi que era olhada de outra maneira, e sabes porquê, porque era filha do nada ou seria filha do tudo, de uma mãe que não perdeu a força quando viraste costas, e levou a minha vida por diante, acabando por deixá-la entregue a si própria, talvez porque perdeu a força, talvez porque o destino falou mais alto, ou simplesmente porque tinha que ser assim, por vezes penso que vocês fizeram um pacto que me empurrou para a vida que me obrigou a pegar o touro pelos cornos.
Vou contar-te um segredo, um daqueles segredos que os filhos contam aos pais por saberem que eles o guardaram eternamente, é a primeira vez que te escrevo, em todas as palavras que inventei nunca houve lugar para ti, por te culpar da vida que escolhi, sim, durante muito tempo foste o culpado de todos os meus erros de todas as minhas falhas, todos os sonhos deixados por viver de todas as estradas que deixei de palmilhar, porque os filhos tem que ter pai e os meus tinham que o ter, o ser humano precisa de referencias onde se agarrar nas horas de solidão, finalmente atingi a maturidade e clarividência suficiente para te falar disto tudo, finalmente enterrei a raiva e a magoa, talvez nunca consiga compreender o porquê, mas deixou de doer, restou apenas uma pequena esperança de que sintas o meu estado de espírito e isso te tranquilize, porque sei que não dormes descansado, mesmo que já cá não estejas, um pai nunca dorme descansado quando deita filhos no mundo.
Sabes pai , geraste uma filha que carrega na alma versos de uma vida amarga, cavada com enxadas de raiva, mas ao mesmo tempo deste-lhe de herança a força para seguir em frente, a vontade de desbravar terreno, de nunca se acomodar com as negruras da vida, esta força que me move tem que ser herança tua, preciso acreditar nisso.
Acreditarei sempre nisso mesmo que me chamem louca

Antónia Ruivo




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