AQUELE AUSTIN

Data 31/03/2009 23:26:22 | Tópico: Crónicas

AQUELE AUSTIN


De súbito, ouve-se o roncar de um motor de automóvel, acabado de entrar na recta da Pedreira, de escape aberto como qualquer dessa época.
Além de ser para nós já inconfundível aquele “trabalhar” de motor, a hipótese de ser outro carro (estávamos na década de 40), era remota ali na aldeia.
Claro que era o pai, no seu Austin dado à luz nas Fabricas de Bristol no ano de 1933.
Todos respiramos de alívio, que o pai já tardava e a mãe estava ansiosa. Uma ansiedade que nos envolvia a todos na mesma prece e agora que ele chegava, na mesma acção de graças. É que a noite ia já avançada e tudo podia acontecer.
Por estas e por outras, guardo desse remoto Austin uma cara recordação e as suas linhas angulosas, másculo como todo o carro do seu tempo, retenho-as no pormenor. Acho que ainda lhe sinto o cheiro dos estofos que na altura já não podiam orgulharem-se de novos.
Nesse tempo, era peça única e invejada lá na aldeia e, apesar de instrumento de trabalho, nem por isso deixava de ser objecto de orgulho e mesmo de vaidade para nós, os de casa.
Recordo esse longínquo Austin com veneração. Era como se fosse criatura da família .
Ao recordar o pai, pressinto-lhe o carro nas imediações e, quando recordo o carro, lá vai o pai, assumido da responsabilidade que para ele era conduzir um automóvel – ele que aprendeu a guiar em 1915 no carro dos patrões – um Panhard 1911.
Estou grato a esse Austin pelas satisfações que me deu, pelas vezes que me transportou lá abaixo à vila, que ao tempo significava em boa verdade ir de visita à Civilização.
Há tempos num rally de carros antigos que fazia paragem junto ao Paço dos Duques de Bragança. Quando se aproximavam deparei com surpresa com um carro exactamente igual aquele Austin. Estacionando ali próximo, abeirei-me dele a passo largo na ânsia de lhe ver a matricula. Para minha decepção não era o MN-23-74. De qualquer modo deu para o comer com os olhos e com as pontas dos dedos. Senti então que o mundo dos afectos pode passar por coisas com uma velha, férrea, fria e frívola maquina automóvel .



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