Da planície das coisas por escrever

Data 27/05/2007 20:14:55 | Tópico: Poemas -> Sombrios

Da planície das coisas por escrever nasceu um lírio
sem trono
sem tecto
sem espelhado afecto.
Nasceu parido do ventre dos lamentos e gemidos,
dos ruídos derrotados e vencidos das cigarras.
Nasceu cuspido na cara desmaiada das palavras
cruas. Maltratadas.

Da serra elevada aqui ao lado
rebolam-se nervos cardados de memórias
num rosto moreno, a navegar-se em moradas de charcos.
Barcos áureos sem rumo, sem velas, velejam-se
ao som da voz cantada.
Da voz que, cansada de si, pranta,
em longínqua estrada.

Perco-me entre o plano e o composto.
Rebusco a chama distante do teu corpo,
a lava adormecida na noite do enigma.
Busco um momento
na seiva cálida do teu gosto
na saliva lenta da renuncia a escorrer-se aberta
na esteira pálida da palavra.
Num adeus distante de gestos gastos e repetidos,
no tédio déspota dos sentidos.

Na planície acerada dos trigais,
não te encontro nem sequer me encontro mais.

Mergulho no charco pardacento, o verbo,
a palavra, o sentimento.
Na boca bafiosa sinto gelo, moribunda rosa.
No estômago o soco, o invólucro transparente do nada.
Sopra da serra um mundo agreste,
que me veste do fim e me despe do começo de mim.

Da planície das coisas por escrever,
das coisas por viver, nasceu um lírio nado-morto
a pontear de roxo um espaço devoluto de oco.

Ao longe, na boca do mar, nasce agora o Sol-posto.




Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=8285