Conversa furada

Data 21/05/2009 19:25:05 | Tópico: Contos -> Humor

Engrácia excomungava a desdita, embora soubesse que as três filhas não tinham como se sentir culpadas. Bertília, Donzília e Generosa eram o quadro vivo da falta de massa cinzenta do seu, graças a Deus, já falecido pai. Dominguinhos, como era conhecido na aldeia, era mais burro que o jumento Pileca e mais casmurro que a mula velha Dentinha, ambos seus únicos amigos e confidentes, já que Dominguinhos zurrava, por entre dentes, os poucos vocábulos que conseguia vociferar.
Engrácia, até hoje, desconhecia porque havia embarcado naquele matrimónio, o facto é que a sua cruz não acabara com a morte de Dominguinhos, pois o finado deixara em herança 3 pedras por lapidar.
Bertília, com ar desalinhado, vivia escondida pelos quatro cantos da casa e agarrada ao borralho onde preparava café, cujo aroma a cevada, a remetia para a fantasia da Gata Borralheira e a fazia sonhar, embora ela dormisse sempre de olhos abertos. O seu vocabulário limitava-se rudimentarmente a meia dúzia de palavras com as consoantes trocadas.
Donzília, de formas arredondadas e ar afogueado, vivia agarrada à vassoura, e em movimentos repetitivos espalhava o lixo que acabara de recolher com a pá ferrugenta, condição a que ela atribuía a culpa de não ver concluída a tarefa a que se propusera, exterminar o lixo das suas miseráveis vidas. Expressava-se com uma dislexia quase tortuosa o que a obrigava a evitar falar com estranhos.
Generosa, a quem a mãe assim baptizou por acreditar que esta filha seria talhada à sua imagem, nasceu muito franzina e ao longo dos anos foi-se revelando de saúde muito frágil, destruindo as ilusões de Engrácia de este último rebento ser o mais são e escorreito. A beleza também não assentou nela e a timidez impediram-na de se relacionar, por complexo e fraqueza. Mesmo em família era quase a sacho que se lhe arrancava alguma palavra.
Não podendo contar com as filhas para a ajudarem nas compras, Engrácia avisou que iria à cidade e recomendou, como era seu uso, que não abrissem a porta a ninguém e que não falassem com estranhos na sua ausência.
Um vendedor ambulante que passava por ali, conhecedor da história destas tristes irmãs, proibidas de falar com desconhecidos, fez uma aposta com um amigo da aldeia em como seria capaz de pôr as três irmãs a falar com ele.
Aproximou-se da casa e bateu à porta, recebendo em troca um silêncio mordaz, as irmãs estavam assustadas e não ousavam sequer falar umas com as outras. O vendedor começou a gritar que estava a morrer à sede e de pronto a porta abriu-se e surgiram, em fila, as 3 jovens com olhar esbugalhado.
O vendedor repetiu que tinha sede porque achava que tinha febre e que se não lhe dessem de beber que não aguentava até à cidade. As irmãs entreolharam-se com cumplicidade e Bertília foi à cozinha e trouxe um púcaro com água fresca da enfusa. O Vendedor agradeceu e bebeu a água, deixando de seguida cair o púcaro que se fez em cacos de barro.

Bertília gritou de imediato: “ Ai que lá se tebou o putaínho!”
Donzília retorquiu: “Tebou-se não se tebasse!”
E Generosa na convicta eloquência do seu discurso acrescentou: “A mãe disse que não fanasse, bem fiz eu que não fanei!”
O vendedor saciado da sede e da curiosidade lá se desculpou e partiu para a cidade.
A aposta estava ganha.





Maria Fernanda Reis Esteves
49 anos
Natural: Setúbal
email: nandaesteves@sapo.pt




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