vejam só como eu sou um tipo famoso

Data 26/05/2009 18:45:45 | Tópico: Crónicas

Desde que os meus amigos e inimigos deram conta que eu era o responsável por estas crónicas amargas e doces os sorrisos não param de aumentar, uns dirigem-se a mim como: olha o senhor dos calhaus!, outros mais sarcásticos do que a minha avó, perguntam-me: não tens aí um calhau para a gente fumar, ó meu? Bem, há de tudo na vida, como não há nada na morte.

Enfim, fazer a rua direita completa sem dar nas vistas é assunto de trinta páginas para um futuro romance.
As pessoas pasmam-se e exclamam: afinal o gajo que escreve aquelas tretas tem cabelo encaracolado! Infelizmente, a fama não me tem dado bons resultados, apenas uns copos de cerveja. E foi o que foi: esta manhã, sol de verão, olhava as montras só por olhar, um indivíduo de meia idade bateu-me nos costados com uma leveza que eu estranhei.

- Bom dia, amigo!

A palavra amigo tem dias que me custa a engolir, mas pronto, lá teve de ser. O seu sorriso dava a sensação de ser um sorriso a pilhas, mas ainda assim retribui: Bom dia!

Depois de uma breve introdução sobre as focas em extinção, de alguns casos de polícia, veio com esta ladaínha:
- Gosto muito de o ler, sabia?! – Continuou – Em minha casa todos o lemos. Só você e o Fernando Mendes!

Hum, fiz de conta que entendi a comparação e, como sei que isto é mesmo assim, agradeci a gentileza com um muito obrigado.

Durante uns dez minutos encheu-me o ego com elogios para cima e para baixo, que como escritor não há nenhum, blá blá blá, que as minhas crónicas terão mérito além fronteiras, etc, etc, qual Saramago qual quê...
Agradeci-lhe a simpatia umas trinta vezes, tinha ali fã, alguém que se preocupa com a pessoa que está por detrás destas palavras. O meu coração vacilou de bons espantos, é um facto. Convidou-me a ir tomar um café ou que quisesse e, como terra-a-terra que sou, aceitei.
Fomos ao café Conforto.
Havia qualquer coisa nos olhos dele que parecia querer falar mais alto do que a boca, o seu sorriso, esse, sempre de roda no ar.

Mais palavras, mais elogios sobre a minha escrita, mais escovadelas, mais umas minis geladinhas, mais semi-fusas no seu português que eu nem catrapiscava uma frase completa.
Até que, o seu sorriso parou. Os seus olhos idem aspas. Falou-me da crise do país com pequenos gritos na voz, na dificuldade que é em atravessar os meses e os dias, o emprego por um fio, a mulher a dar-lhe inúmeros avisos de separação, os filhos e essas coisas todas.

A única psicologia que lhe dava era apenas abanar com a cabeça.
No pico da conversa, veio aquela parte que todos sabemos: sabe como é, a vida de um pobre, isto está duro...se me pudesse emprestar algum, só para organizar a minha vida, quinhentos euricos, não peço mais, que daqui a dois mesitos, se tanto, devolvo-lhe o dinheiro, com juros se preferir, pode acreditar que sou uma pessoa de boas fés, e você, pessoa talentosa, de sensibilidade maior, se me poder desenrascar nesta fase crítica da vida, Deus falará ao seu coração com certeza. Gostei das palavras, um pouco comoventes diga-se de passagem, mas, como lhe dizer que também eu ando num barco desconcertado onde o mínimo descuido, zás, caio ao mar.
Como lhe dizer que isto de escrever para jornais não dá nem sequer para as sardinhas?
Sem círculos na língua, respondi-lhe:

- Vai-me desculpar mas não lhe posso ser útil nesse aspecto.

Foi que nem bomba, nesse cirúrgico momento sentiu-se mesmo a Terra a estremecer, o homem, que de sorriso aberto passou para o registo de sorriso fechado - mas com um canino de fora a brilhar - o cabelo levantou-se como tropas militares e ripostou em greco-romano:

- Vendo melhor as coisas, você não escreve nada! As suas teorias são indigestas e deploráveis. Só um mediocre é que escreveria aquelas coisas banais, tão banais que até faz mal ao fígado!

Mau, nesse momento senti mesmo a terra parar, fiquei a olhar o homem num cálculo à xadrezista, pois tinha em mente uma indecisão: ou saltar-lhe ao focinho ou ignorá-lo. Das duas uma. Virei-me para o céu em pedido de auxílio e perguntei:

- Que faço Senhor?

Para a maior das surpresas, ouvi uma voz a dizer: escolhe a primeira!
Afinal o homem tinha razão: Deus fala ao coração.




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