Romântica Divagação

Data 27/05/2009 22:52:09 | Tópico: Crónicas

Romântica Divagação


Mora em mim a nostalgia do Sec. XIX.
Como se a memória fosse hereditária, fazendo-nos prodigiosos receptáculos de toda a nossa historia pessoal, tenho por vezes a sensação de que passei por esse tempo, de que trouxe românticas recordações. E prefiro o Sec. XIX por conciliar para além do romântico, o lírico e o bucólico das eras passadas, com os alvores de um tempo novo que se fazia anunciar.
Era o Maravilhoso das coisas de que ia havendo noticia e, algumas, se iam tornando realidade. Eram o comboio, a electricidade, a rádio, o telefone, a darem ao longe os primeiros passos.
Recordo-me desse tempo certamente com a memória de algum dos meus bisavós com força anímica capaz de projectar nos vindouros as suas vivências.
Nem tudo eram rosas nesse tempo. E não o eram para a maioria da população e por isso, decerto, as minhas saudades dessa época - as imagens que me povoam a memória – andaram em torno de ambientes aburguesados, por influência de um Júlio Dinis e outros autores, a quem responsabilizo em boa medida por esse saudosismo em mim instilado, que pouco terá que ver com a minha ancestralidade. Se nos fosse dado ver através do tempo, decerto que o lirismo se desvanecia em boa medida.
É assim, com os olhos da memória, que vejo e sinto o espanto do meu bisavô Andrade, quando soube que lá fora já era possível, com um estranho aparelho, escutar mensagens a centenas de quilómetros de distância. E não terá sido melhor o deslumbramento do meu visavô do Olival, quando se decidiu a ir pela primeira vez ao Porto de comboio – essas galgas negras que corriam e furavam os montes e que eram prenúncio de fim do Mundo. Sinto nele a embriaguez alucinante da velocidade, num pouca terra que devorava quilómetros que nem o alazão mais adestrado das redondezas e sem espumar cansaço ou fazer dores de alma ao montador com resquícios de sensibilidade.
Estou a vê-lo sair do comboio em São Bento, com um toque de importância a irradiar-se-lhe do semblante, essa fraqueza porque resvala a humana criatura quando realiza uma experiência nova ou a que poucos tiveram acesso. Estou a ver-lhe o ar grave com que desceu da carruagem no termo de uma viagem de 70 Km, feita num só dia. Saiu de madrugada de Amarante e o sol ainda raia quando chega ao Porto.
Na Granja, encravada numa vertente do Marão debruçada sobre o Tâmega – recordo-me de o ouvir contar à lareira – todos sabiam tocar, embora o tio Ulisses fosse o virtuoso da família. As noites de Verão, anunciadas por uma Lua ainda não despudorada pelo pé do homem, e que também ela se comprazia com os acordes de bandolim bem trilados ao passo do violão, eram um regalo para ouvintes e executantes. Algumas toadas do sertão brasileiro trazidas pelo visavô Pedro, também elas faziam chorar de saudades mesmo aqueles que nunca puseram pé em terras de Vera Cruz – Que saudades desse tempo, Deus meu.

Antonius

(Novembro de 1982)



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