QUANDO É O FRIO QUE AQUECE

Data 29/05/2009 23:10:55 | Tópico: Crónicas

QUANDO É O FRIO QUE AQUECE


Hoje, neste instante, apetece-me ir atrás buscar uma nesga de tempo. Tenho muito que caminhar, mas vou mesmo. O denso nevoeiro que cobre o rio dos fins de Novembro dá para adivinhar que o sol virá, mas só lá para as calendas. Os colegas que estão a chegar e que moram a meia serra dizem que lá nos altos já havia sol, mas aqui à beira rio - um rio caudaloso que vem das montanhas - é de enregelar. Nós, pretensos aburguesados de galochas e sobretudo e dois livros debaixo do braço a caminho do colégio - uma espécie de raça superior não sabíamos o que era o frio, para além de passageiras frieiras que nos calcorreavam os dedos das mãos. Coisa diferente era o lençol branco a espreitar por entre o nevoeiro de uma das varandas voltadas para o rio onde mergulhavam os alicerces das casas. É que atento o olhar, esse lençol embrulhava algo que se movia e depressa demonstrou esconder forma humana. E era, nem mais nem menos o Fraqueira. Do jardim do piolho, espécie de varanda sobre o rio, alguém o reconheceu e chamou pelo nome a que ele correspondeu alto e bom som e com uma rajada de humor. Deu para constatar que nada mais o cobriu durante a noite, nada mais o terá coberto durante as noites daquele Inverno. Não me recordo que alguém falasse em frio, ou perguntasse a esse respeito, tão pouco ele tenha feito algum comentário ou queixa. Que mundo era aquele que consentia que ele dormisse daquela maneira por cima dos gélidos vapores dum rio de Inverno. Daqui, na distância do tempo sucumbo eu à tua humildade, mas não me tolero, não me perdoo que deixasse-mos correr, apesar do adolescente da idade, uma cena desta força humana. Não pode ser pensante consentir que puídos lençóis resolvam o problema das noites gélidas dos que não tem eira nem beira. Mas, consentindo ou não a verdade é que esse cenário acontece – continua a acontecer - para vergonha desta sociedade. A nossa geração não foi capaz de resolver o problema, mas tenho que ter alguma esperança nas gerações que estão agora na ribalta.
O Fraqueira, morreu já, soube-o há pouco. Não terá sido o frio que o matou mas estou certo que no seu esgravatar de uma vida, que acabou por lhe dar um mínimo de condições, não terá esquecido nunca, as noites impossíveis de um beira - Tâmega de Invernos impiedosos.

Antonius




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