Memórias da filha do marceneiro

Data 10/06/2009 10:47:46 | Tópico: Textos



Ao remexer em velhos pedaços de memórias, veio-me parar às mãos sem que as procurasse. Era um pequeno molho de cartas já amarelecidas e desgastadas nas pontas que eram agora arredondadas e com aquele aspecto envelhecido, tão característico das velharias esquecidas no fundo escuro e bolorento de uma qualquer gaveta de um móvel antigo.

Foi como se tivesse embarcado numa cápsula do tempo... de súbito, encontrei-me precisamente naquele mesmo sítio onde estava, mas o tempo havia recuado trinta anos para trás...

Permanecia tudo igual. A velha cómoda ao fundo da cama, o roupeiro embutido na parede aproveitando o espaço por baixo das escadas que davam acesso à oficina do meu pai, agora tão silenciosa contrastando com o barulho atarefado da faina das polainas, do martelo, da serra eléctrica... desde a madrugada até bem tarde da noite de todos os dias da semana, excepto ao Domingo. Não havia ninguém que ao passar na rua, não o viesse cumprimentar com os "bons dias" e dar dois dedos de conversa. Ele estava sempre ali e as pessoas sabiam-no e apreciavam as suas opiniões sobre política ou sobre este ou aquele outro assunto mais pessoal de cada um, que faziam questão de lhe pedir opinião. Ou ainda, qualquer outra coisa de bastante importância na época. E até as histórias de um passado em que vivera em Lisboa nos já tão longínquos finais dos anos cinquenta até meados de sessenta e que lhe haviam ficado marcadas e nunca se cansava de as contar. Geralmente eram episódios que culminavam em sonoras gargalhadas, que eu ouvia do meu quarto, que ficava mesmo por cima da velha oficina.
Fosse de manhã, de tarde ou à noitinha, havia sempre gente por ali a fazer-lhe companhia e a desfrutar do prazer que a conversa lhes dava.

Abri-o, estava intacto. As mesmas roupas de cores berrantes e feitios ridículos, mas tão na moda daquela época. Lá estavam elas, à espera que alguém as vestisse de novo, penduradas nos cabides de madeira já carunchados. Um estilo à anos 80, que se mantinha suspenso no tempo. As mesinhas de cabeceira, com naperons brancos como se fossem tapetes de bibelots antigos. Havia também um livro poisado em cima de uma delas. Era um velho "Almanaque Bertrand" de 1939, com uma capa verde e um petiz vestido de encarnado que segurava uma das pontas de uma faixa larga e branca onde se lia: "... anedotas, astronomia, matemática, pensamentos, prosa, poesia, arte, etc... etc..." Era um dos poucos livros a que tinha acesso e que me fazia as delíciasde então, tanta era a variedade de conteúdos que nele encontrava. Na estante improvisada na parte de cima da cómoda, havia muitos mais... a colecção quase completa.

Foram aquelas cartas que me levaram a viajar no tempo. Ainda me lembro do dia em que o Sr. Alberto, o carteiro que percorria todas aquelas aldeias da freguesia, me entregou a primeira de todas elas. Era Agosto e o calor apertava, seriam umas duas horas da tarde. Estava sentada na soleira da porta, para onde ia todas as tardes na hora da sesta. Aproveitava a sombra e esperava por um qualquer vento fresco, que me refrescasse a pele encharcada, pegajosa e castigada pelo árduo e pesado trabalho do campo e do qual não tinha como me escapar...

Lá vinha ele com a velha sacola de cabedal ensebado, a tiracolo. O carteiro era sempre muito ansiado pelas raparigas espigadotas que o esperavam nas soleiras das portas. Especialmente nos dias que se seguiam a qualquer festa ou bailarico onde tivessem desencantado um jovem forasteiro e com ele tivessem dançado até o baile terminar. Desejosas que estavam das cartas que nunca mais chegavam... Às vezes lá tinham sorte! Mas para mim, o sr. Alberto nunca trazia nada.

Mas naquele dia foi diferente. Parou a dois passos de mim e disse, enquanto me esticava um envelope:
- Toma lá, hoje trago uma carta para ti!... Petrifiquei! Nem queria acreditar no que os meus ouvidos acabavam de ouvir e perguntei a medo mas num tom exclamativo.
- Tem... tem a certeza de que é mesmo para mim, Sr. Alberto?!
- Ora, claro que sim! Ora lê lá tu o que diz o envelope...
Sim, ali estava o meu nome e morada no destinatário. Era mesmo para mim!
Segurei-a na mão trémula, enquanto o carteiro se afastava discretamente com um sorriso malandro nos lábios.
Esta foi uma das primeiras emoções, que me fizeram desabrochar para a vida, qual rosa em botão que se abre devagar e recebe os primeiros raios de sol que lhe acariciam a seda das pétalas, deliciando-se com o seu calor.

Li-a e reli-a vezes sem conta...
Guardei-a junto de todas as outras, embrulhadas numa fita de seda azul, num pequeno baú de madeira de castanho, envernizada. Feito pelas mãos do meu pai ou não fosse ele o melhor e mais perfeito e também o único marceneiro da freguesia e a quem todos encomendavam os móveis novos que precisavam ou queriam ter nas suas casas. Acho que todas têm pelo menos um!





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