nem ácaro nem ácarozinho

Data 23/06/2009 15:19:16 | Tópico: Crónicas

Gosto de promoções.
Gosto de ser enganado um bocadinho.
Mas só um bocadinho. É que se passar de um bocadinho já me altera o nível do colestrol, o ácido úrico dispara e, a diabetes, nem vos digo.
Gosto de comprar a metade do preço embora sem saber qual o preço inteiro. Gosto de pensar que os meus eurinhos foram bem investidos apesar de não entender nada de aplicações financeiras.

Outro dia vieram-me à porta bater, e desta vez não era da Jeová, ufa!, era um tipo bem arrumado dentro de um fato escuro que me queria explicar as funcionalidades múltiplas de um aspirador moderno, com desavinte botões coloridos que, com um bocado de jeito, até serve para tirar calos dos pés.
Ao início pensei em despachar o senhor com o meu péssimo humor, fruto de assistir às assembleias camarárias, mas, e como diz um verso da Amália Rodrigues, “foi por vontade de Deus”, que eu abri as portas de minha casa para que o técnico de aspirações de ácaros e verdetes fizesse uma demonstração prática ao meu simplório T1, sem garagem e com vista para o acampamento de ciganos.
O senhor, com cerca de trinta anos, dotado de uma inteligência para assuntos de mecânica de aspiradores, tratou logo de me surpreender com a quantidade de lixo que microscópicamente coabitava num tapete que, por ter sido comprado na Festa do Avante, eu jamais imaginaria que insecto ou ácaro algum pudesse aderir ao tapete.

Mas não! Os ácaros lá estavam, no meio de cinza de cigarro, nódoas de Borba e outros materiais que só a medicina forense é capaz de identificar. O meu espanto foi entendido com um riso efectuado pelo senhor dos aspiradores.

Passou à fase seguinte: verificar o colchão da minha cama. Feitas as manobras essenciais ao aspirador, este, mal accionado o botão, começou a sugar quanta porcaria existia no colchão. Mas que eu desconhecia! Garanto-vos que eu não sabia que as minhas lindas costas, como quem diz, assentavam naquele rectângulo fofo, mas cheiínho de ácaros quanto basta para que eu me sentisse envergonhado perante o agente dos aspiradores que, pelos vistos, não perdoava nem ácaro nem àcarozinho.
Fiquei sem palavras perante aquele espectáculo de lixaria a subir pelo cano do aspirador até a um saquinho que ele fez o favor de me mostrar como prova da minha falta de asseio.
- Está a ver!

Feito isto, o técnico dos aspiradores miraculosos despiu o seu lado de fachineiro e vestiu-se de um outro que era: o de técnico de contratos.
Só ao fim de dois minutos é que me apercebi que aquilo que ele falava de facto não era chinês, mas sim uma linguagem quase perto de ser considerada um Chamamento. Pela simples razão de o técnico, aquando o seu discurso meio filosófico, fazia uns gestos, de que me lembra, só o Papa João Paulo II é que os fazia quando na sua varanda orava para os seus fiés.

À parte disto, e o seu ar angelical a propor “ande lá, compre o aspirador!”, fiquei cem por cento embriagado quando ele me disse o preço: 400 euros. Por extenso: quatrocentos euros a serem pagos em cómodas mensalidades.
Aqui foi o momento crucial.
Como lhe dizer que estou sem emprego e que não tenho crédito em lado nenhum? Comecei por lhe falar de estrelas cintilantes e astros por descobrir, mas o técnico, que era sabido como um raio, voltava ao assunto que o trouxe até mim: vender-me um aspirador moderno! Pedi-lhe mais uma prova das capacidades do aparelho, desta vez no meu escritório, pouco recomendado a ambientalistas, ao que ele, todo vaidoso, pegou no sofisticado engolidor de bactérias e, zás!, deixou-me o escritório num brinquinho.

Depois mais uns tectos difíceis de alcançar, mais umas paredes mortas, mais uma divisão da casa, e por aí. De facto o aspirador tinha muitos aspectos positivos, excepto um: o preço. Tentei negociar. Que absurdo!, disse-me ele. 400 euros e nada menos! Comecei a ficar farto de limpezas, o tom da nossa conversa afiou-se, de senhor para aqui e para acolá comecámo-nos a tratar por tu, entretanto já era noite e, após longo impasse, sem querer abusar mais da paciência do homem virei-me para ele e perguntei-lhe:
- Quanto tempo demora a formação de novos ácaros?
- Cerca de seis meses – Respondeu-me ele de pronto.

Matutei.Fiquei mais de sessenta segundos a admirar o aspirador numa contemplação quase-poética. Era lindo! Tinha uns encaixes bonitos, mas, feitas as minhas contas de cabeça, e olhando agora para a minha casa limpinha, os tapetes e colchões a reluzirem, isentos de pó e ácaros que ele fez o favor de os limpar sem pedir nada em troca, eu a ver como é que contornava a coisa e tal, eureka!, disse-lhe com a maior das latas, num jeito só meu:

- Sabes...acho-te um tipo especial, um artista, inclusive...olha que conto contigo daqui a seis meses, ouviste?
- Ahaa...ahaa...
- Que ahaa, deixa-te de modéstia homem, quando a minha família inteira ouvir falar de ti...!



Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=88070