literaturamente só

Data 06/07/2009 16:45:42 | Tópico: Crónicas

A minha idade está pronta.
conheço muitas ruas desde as suas nascenças. de caminho de cabras até serem auto-estradas rasgando montes onde antes haviam eucalíptos, pinheiros, grutas, tocas de bichos estranhos, faúlhas, ninhos, raparigas que se ofereciam, etc. conheço o mundo antes de ele me dar alguns conselhos. sou uma espécie de vento que caminha rasteiro e alto pelas multidões.

tenho histórias mal contadas na minha cabeceira que me pedem para eu lá entrar. livros que remontam há época dos dinossauros voadores, da inquisição e dos falsos padres. também tenho algo sobre a fascinação das flores, para rever conceitos, normalmente cinco minutos antes de bater asas para voar. adormeço quase sempre para o lado poente por questões de vaidade.

tenho aproximadamente mil anos, mas há quem me dê mais anos, pela aparência, pela gravidade da minha voz. sou um caso a pensar.

assisti à descoberta da lâmpada, ajudei um homem a ser deus, conduzi naus e outros tipos de embarcações, fui estrangeiro, fui roubado, fui obrigado a nada. leio: na simbologia dos cegos, pontas dos dedos sobre o papel. procuro: uma morte limpa e serena como a do meu pai.

a minha verdade é um fruto que todos querem compôr a sua versão ou sabor. o que me dói são as palavras. estou quase. maravilho-me por dentro por saber que estou quase. que me perdoem os meus amores de algum dia, a falta de ouvido para a música.

a minha idade está pronta, o meu cavalo também, vejo-o a sorrir, de crina bem penteada, cascos mudados, um olhar em frente, e a força de arrastar o chão. ele me levará para onde não posso dizer. não quero que me acompanhem. irei só. literaturamente só.



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