O velório

Data 26/07/2009 17:21:22 | Tópico: Poemas -> Surrealistas


Velava-se um morto
Naquela sala escura
De um Outubro qualquer
Perdido
Num calendário antigo
Esquecido numa parede velha

De repente
Sem ninguém o esperar
Um sopro de vento
Irrompeu do nada
Tremelicando
Nas chamas mortiças das velas
E estilhaçando o silêncio
Que lhes pesava nos ombros

Assustadas
As pobres almas de vela
Olharam-se umas às outras
Sem pingo de fala...

Não tinham dúvidas
Viera daquele enorme espelho antigo
Ao meio de um dos lados da sala
Herança ancestral
De antepassados
Já finados há muito...

Mas que os observavam sem pestanejar
Como se os guardassem de algo

Estavam por todo o lado
Enclausurados em molduras
Dos seus próprios retratos
Alguns
Espalhados p'los móveis empoeirados
Outros
Pregados nas velhas paredes
Encardidas

Mas sem nunca tirarem os olhos dos vivos...

Nisto
Ouviu-se o ranger de uma porta
De dobradiças enferrujadas
Carcomidas p'lo tempo
Como se há muitos séculos não abrisse...

E do interior
Daquele espelho
Que tinha tanto de medonho
Como de misterioso
[Talvez do outro lado da vida]
Surge uma figura sinistra
Uma sombra sem rosto
Apenas as vestes negras
Cobriam o formato de um corpo
Que não existia...

Por momentos
Pareceu conta-los um a um
Ignorando o terror
Dos rostos que se escondiam
Em vão
Por detrás do tremor das mãos…

Sim
Não faltava ninguém
Entre vivos e mortos
A família
Estava toda reunida

Não havia motivo
… para qualquer punição!

Tal como viera
Assim o foi
Entrando p’la negridão do espelho adentro
E deixando no ar
A ausência de qualquer som
Só o reflexo do assombro
No olhar envidraçado e aterrado
De todos
Quantos ali estavam
E assim ficaram...

Completamente petrificados!




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