VIDA SEVERINA

Data 02/09/2009 19:37:33 | Tópico: Poemas


As ruas da cidade parecem mais desertas neste dia feriado. Vagueante por inacção, errático, ia conhecendo rostos, aqui e ali vagamente familiares, no percurso em direcção a uma qualquer casa de pasto ou tasca que felizmente ainda persistem na Baixa. Foi numa dessas, onde entrei sem lugar marcado nem pré-aviso, que intempestivamente acordei do torpor que me invadia quando ouvi, de onde menos esperava que brotasse voz, um português nem agreste, nem doce, mas que facilmente se identificava como brasileiro. A conversa parecia ir a meio, embora eu que já lá estava há uns bons dez minutos e não tinha dado fé daquele vulto de que visualizava apenas as costas (como na alegoria da caverna de Platão, o rosto estava virado para a parede e descrevia algo que me parecia distante da realidade):
: ...”Nossa Sinhora –desabafava o homem – qui vida a minha. Estou legal aqui, mas fui trabalhar para Espanha que lá pagavam mais. Todos os meses mandava todo o dinheiro qui poupava pra minha mulher e meus dois filho. Quando regressei agora, não havia mulher, não havia filho, não havia casa...Miinha Nossa Sinhora! Não havia nada! E aqui estou, começando de novo, sem um real, sem trabalho, sem tecto pra morar e uns poucos agasalho que na Segurança Social tiveram a gentileza de me ofertar. Vou a Tróia que me disseram que estavam precisando de trabalhadores. Os quatro euros é para o barco e para esta sopa, que o estômago está pedindo.”

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Sentado numa mesa ao lado, um homem parecia o destinatário daquele arrazoado que os clientes do pequeno restaurante escutavam em silêncio e de início com uma postura um pouco desconfiada. Mas nisso, as mulheres, por curiosidade ou compaixão, ou ambas as coisas, não passam ao lado e, pouco depois, a conversa já se generalizara e uma onda de simpatia permitia ao nosso espontâneo confidente comer condignamente enquanto ia desenvolvendo pormenores sobre a sua vida que me assentavam como murros no estômago. Que se passa connosco, afinal, que vemos, ouvimos e não percebemos, que ignoramos, mesmo quando se passa ao nosso lado, a vida destes “retirantes” que João Cabral de Mello Neto tão bem descreveu nos seu poema dramático “Morte e Vida Severina” ?
São os navios do sonho que procuram as Canárias ou o bilhete de 500 euros para o paraíso Europa de qualquer lugar do Brasil. Vida Severina esta onde já não são as pessoas que se deslocam para a fábrica, mas em que as fábricas são gigantescas autocaravanas, que deslizam incessantemente à procura de novos severinos. “Que morrem de fome antes dos trinta...”. Que nos sucedeu a nós, entretanto, que aprendemos a indiferença, seres esquálidos sujeitos à ditadura da moda e do ginásio, incapazes de cultivar a solidariedade activa, resignados perante o absurdo?

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