Todos os Poetas

1210 textos
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Budismo moderno
em 07/08/2023 19:47:00 (201 leituras)
Augusto dos Anjos

Tome, Dr., esta tesoura e… corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contrato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!


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A Neve e o Amor
em 07/08/2023 18:57:00 (202 leituras)
Lêdo Ivo

A Neve e o Amor

Neste dia de calor ardente, estou esperando a neve.
Sempre estive à sua espera.
Quando menino, li Recordações da Casa dos Mortos
e vi a neve caindo na estepe siberiana
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Amo a neve porque ela não separa o dia da noite
nem afasta o céu das aflições da terra.
Une o que está separado:
os passos dos homens condenados ao gelo escurecido
e os suspiros de amor que se perdem no ar.
É necessário ter um ouvido muito afiado
para ouvir a música da neve caindo, algo quase silencioso
como o roçar da asa de um anjo, caso os anjos existissem,
ou o estertor de um pássaro.
Não se deve esperar a neve como se espera o amor.
São coisas diferentes. Basta abrirmos os olhos para ver a neve
cair no campo desolado. E ela cai em nós, a neve branca e fria
que não queima como o fogo do amor.
Para ver o amor os nossos olhos não bastam,
nem os ouvidos, nem a boca, nem mesmo os nossos corações
que batem na escuridão com o mesmo rumor
da neve caindo nas estepes
e nos telhados das cabanas escuras
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Para ver o amor, nada basta. E tanto o frio do inverno como o calor escaldante
o afastam de nós, de nossos braços abertos
e de nossos corações atormentados.
Fiel à minha infância, prefiro ver a neve
que une o céu e a terra, a noite e o dia,
a ser a presa indefesa do amor,
o amor que não é branco nem puro nem frio como a neve.


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Dor elegante
em 08/07/2023 19:10:00 (332 leituras)
Paulo Leminski

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra


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Antífona
em 17/03/2023 01:12:24 (241 leituras)
Cruz e Souza

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...


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Agora não se fala mais
em 14/03/2023 15:14:14 (306 leituras)
Torquato Neto





Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:

Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento.


Torcato Neto


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O Que Eu Sou
em 14/03/2023 15:13:13 (281 leituras)
Teixeira de Pascoaes




O Que Eu Sou


Nocturna e dubia luz
Meu sêr esboça e tudo quanto existe...
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste...

Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas...
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.

E tu, Sombra infantil do meu Amôr,
És o Sêr vivo, o Sêr Espiritual,
A Presença radiosa...
Eu sou a Dôr,
Sou a tragica Ausencia glacial...

Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti...
Mas quem morreu?
Fôste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!

Horrivel cataclismo e negra sorte!
Tu fôste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apoz a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o logar
Da minha espiritual, futura imagem...
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.

Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Vento de eternidade,
Arrebatou meu sonho! E fugitiva
Deste mundo se fez minha alegria;
Mais morta do que viva,
Partiu comtigo, Amôr, á luz do dia
Que doirou de tristêsa o teu caixão...
Partiu comtigo, ao pé de ti murmura;
É maguada voz na solidão,
Dôce alvor de luar na noite escura...
E beija o teu sepulcro pequenino;
Sobre ele vôa e erra,
Porque o teu Sêr amado é já divino
E o teu sepulcro, abrindo-se na terra,
Penetrou-a de luz e santidade...
E para mim a terra é um grande templo
E, dentro dele, a Imagem da Saudade...
E reso de joelhos, e contemplo
Meu triste coração, saudoso altar
Alumiado de sombra, escura luz...
Nele deitado estás como a sonhar,
Meu pequenino e mistico Jesus...
Lagrimas dos meus olhos são as flôres
Que a teus pés eu deponho...
Enfeitam tua Imagem minhas dôres,
E alumia-te, ás noites, o meu sonho.

Todo me dou em sacrificio á tua
Imagem que eu adoro.
Sou branco incenso á triste luz da lua:
Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro...




Teixeira de Pascoaes,

in 'Elegias'





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Literato Cantabile
em 26/01/2016 17:28:38 (3784 leituras)
Torquato Neto

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;

agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim do fim de tudo
e o tem do tempo vindo;

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento


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Soneto de Abril
em 17/04/2015 23:41:47 (1976 leituras)
Lêdo Ivo


Soneto de Abril


Agora que é abril, e o mar se ausenta,
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.

Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d'água, mas de canto.

Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:

amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.


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Soneto da Porta
em 17/04/2015 23:40:10 (2564 leituras)
Lêdo Ivo


Quem bate à minha porta não me busca.
Procura sempre aquele que não sou
e, vulto imóvel atrás de qualquer muro,
é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.

Que saiba quem me busca e não me encontra:
sou aquele que está além de mim,
sombra que bebe o sol, angra e laguna
unidos na quimera do horizonte.

Sempre andei me buscando e não me achei:
E ao pôr-do-sol, enquanto espero a vinda
da luz perdida de uma estrela morta,

sinto saudades do que nunca fui,
do que deixei de ser, do que sonhei
e se escondeu de mim atrás da porta.



De: IVO, Ledo. "Plenilúnio". In: Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.


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Descoberta Do Inefável
em 16/04/2015 22:03:13 (1858 leituras)
Lêdo Ivo


A Lêda


Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável,
como pode louvar, não traindo a si mesmo,
a plena e estranha juventude da moça a quem ama?
Que é o poeta, que imita as marés,
sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas estivessem caminhando governadas
pelo seu riso
e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?

Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da terra,
que é o poeta?
Libertado estou quando canto. E quero
que minha respiração oriente a vontade das nuvens
e meu pensamento de amor se misture ao horizonte.
Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem,
no instante anterior ao despertar, folha voando.

Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer,
como conseguirei louvar essa moça a quem amo
e que nasce em minha lembrança plena como a noite
e triunfante como uma rosa que durasse eternamente
e não se limitasse à glória de um dia?
Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar,
não poderei descer de repente
ao inferno de seu corpo nu.

O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós
que alteraremos a indizível ordem das coisas
com as nossas mãos que poderão ficar imóveis
em pleno amor, diante do corpo amado.

É inútil pensar que os anjos morreram
ou se despaisaram, buscando outros lugares.
Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite,
entre as nuvens e as casas em que moramos.

Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a feérica viagem
e lembram que podemos fugir para o longe guardado ainda
no sempre.
Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a comer,
dormir e amar.
Temos necessidade de anjos, para ser homens.
Temos necessidade de anjos, para ser poetas.

Vem, incontável música, e anuncia
(ao poeta e ao homem, humilde unidade)
a ressurreição diária dos anjos.
Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu indomável divertimento
pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez
sem que eu soubesse, por um anjo
perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.

Não é a manhã, depositando a semente de alegria no coração
dos homens.
Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas.
Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da lembrança
de uma mulher.

São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez
à ordem eterna e, à anunciação.
Não nos libertaremos jamais desses anjos
feitos de terra e mar, celestes criaturas
que deixam cair em nós o sol da harmonia.

É inútil matar os anjos.
Eles são invisíveis e traiçoeiros.
De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos
os consumidores de instantes, e estamos
entre o Dia e a Noite, no umbral
de uma eternidade vigiada pelos anjos.


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Canto Grande
em 15/04/2015 00:51:00 (1394 leituras)
Lêdo Ivo

Canto Grande


Não tenho mais canções de amor.
Joguei tudo pela janela.
Em companhia da linguagem
fiquei, e o mundo se elucida.

Do mar guardei a melhor onda
que é menos móvel que o amor.
E da vida, guardei a dor
de todos os que estão sofrendo.

Sou um homem que perdeu tudo
mas criou a realidade,
fogueira de imagens, depósito
de coisas que jamais explodem.

De tudo quero o essencial:
o aqueduto de uma cidade,
rodovia do litoral,
o refluxo de uma palavra.

Longe dos céus, mesmo dos próximos,
e perto dos confins da terra,
aqui estou. Minha canção
enfrenta o inverno, é de concreto.

Meu coração está batendo
sua canção de amor maior.
Bate por toda a humanidade,
em verdade não estou só.

Posso agora comunicar-me
e sei que o mundo é muito grande.
Pela mão, levam-me as palavras
a geografias absolutas.





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Minha Namorada
em 11/04/2015 01:05:02 (3171 leituras)
Vinícius de Moraes

Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser

Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê

Porém, se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer

Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
Os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois




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Até Amanhã
em 06/10/2014 19:10:16 (4705 leituras)
Eugénio de Andrade

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.


Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"


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Esses Moços
em 06/10/2014 19:01:57 (2346 leituras)
Lupicínio Rodrigues



Esses moços, pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Não amavam, não passavam
Aquilo que já passei
Por meu olhos, por meus sonhos
Por meu sangue, tudo enfim
É que peço
A esses moços
Que acreditem em mim

Se eles julgam que há um lindo futuro
Só o amor nesta vida conduz
Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz
Eu também tive nos meus belos dias
Essa mania e muito me custou
Pois só as mágoas que trago hoje em dia
E estas rugas o amor me deixou

Esses moços, pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Não amavam, não passavam
Aquilo que já passei
Por meu olhos, por meus sonhos
Por meu sangue ,tudo enfim
É que peço
A esses moços
Que acreditem em mim


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Vida e Obra
em 29/09/2014 16:35:47 (4784 leituras)
Torquato Neto

Torquato Pereira de Araújo Neto (Teresina, 9 de novembro de 1944 — Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1972) foi um poeta, jornalista, letrista de música popular, experimentador da contracultura brasileiro.
Torquato Neto era filho de um defensor público (Heli da Rocha Nunes) e de uma professora primária de Teresina (Maria Salomé Nunes). Mudou-se para Salvador aos 16 anos para os estudos secundários, onde foi contemporâneo de Gilberto Gil no Colégio Nossa Senhora da Vitória e trabalhou como assistente no filme Barravento, de Gláuber Rocha.

Torquato envolveu-se ativamente na cena cultural soteropolitana, onde conheceu, além de Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar jornalismo na universidade, mas nunca chegou a se formar. Trabalhou para diversos veículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora. Torquato atuava como um agente cultural e polemista defensor das manifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o Cinema Marginal e a Poesia Concreta, circulando no meio cultural efervescente da época, ao lado de amigos como os poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Ivan Cardoso e o artista plástico Hélio Oiticica. Nesta época, Torquato passou a ser visto como um dos participantes do Tropicalismo, tendo escrito o breviário "Tropicalismo para principiantes", onde defendeu a necessidade de criar um "pop" genuinamente brasileiro: "Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido". Torquato também foi um importante letrista de canções icônicas do movimento tropicalista.

No final da década de 1960, com o AI-5 e o exílio dos amigos e parceiros Gil e Caetano, viajou pela Europa e Estados Unidos com a mulher Ana Maria e morou em Londres por um breve período. De volta ao Brasil, no início dos anos 1970, Torquato começou a se isolar, sentindo-se alienado tanto pelo regime militar quanto pela "patrulha ideológica" de esquerda. Passou por uma série de internações para tratar do alcoolismo, e rompeu diversas amizades. Em julho de 1971, escreveu a Hélio Oiticica: "O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma. Todo mundo virou uma espécie de Capinam (esse é o único de quem eu não gosto mesmo: é muito burro e mesquinho), e o que eu chamo de conformismo geral é isso mesmo, a burrice, a queimação de fumo o dia inteiro, como se isso fosse curtição, aqui é escapismo, vanguardismo de Capinam que é o geral, enfim, poesia sem poesia, papo furado, ninguém está em jogo, uma droga. Tudo parado, odeio."

Torquato se matou um dia depois de seu 28º aniversário, em 1972. Depois de voltar de uma festa, trancou-se no banheiro e abriu o gás. Sua mulher dormia em outro aposento da casa. O escritor foi encontrado na manhã seguinte pela empregada da família.

Sua nota suicida dizia: "FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo que FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar". Thiago era o filho de dois anos de idade.

Na década de 1980, a partir de 1984, as gerações mais recentes puderam apreciar o talento poético de Torquato através de seu obscuro poema, "Go Back", que naquele ano recebeu a primeira gravação musical do grupo Titãs, com música feita pelo tecladista e um dos cantores do grupo, Sérgio Britto. A popularidade seria consagrada em 1988, quando os Titãs deram um arranjo ainda mais vigoroso à música, faixa-título de um disco gravado em Montreux, na Suíça.

Na madrugada do dia 27 de setembro de 2010, seu pai, o defensor público Dr. Heli Rocha Nunes, 92 anos de idade, morreu em Teresina, após uma parada cardíaca. A família aguardou a chegada do único filho do poeta piauiense, Thiago de Araújo Nunes (piloto de aeronave em uma companhia aérea brasileira), para realizar o sepultamento do avô.
Frases

"Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela (…). Quem não se arrisca não pode berrar."


Composições


A coisa mais linda que existe (com Gilberto Gil)
A rua (com Gilberto Gil)
Ai de mim, Copacabana (com Caetano Veloso)
Andarandei (com Renato Piau)
Cantiga (com Gilberto Gil)
Capitão Lampião (com Caetano Veloso)
Começar pelo recomeço (com Luiz Melodia)
Daqui pra lá, de lá pra cá
Dente por dente (com Jards Macalé)
Destino (com Jards Macalé)
Deus vos salve a casa santa (com Caetano Veloso)
Domingou (com Gilberto Gil)
Fique sabendo (com João Bosco e Chico Enói)
Geleia geral (com Gilberto Gil)
Go back (com Sérgio Britto)
Juliana (com Caetano Veloso)
Let's play that (com Jards Macalé)
Lost in the paradise (com Caetano Veloso)
Louvação (com Gilberto Gil)
Lua nova (com Edu Lobo)
Mamãe coragem (com Caetano Veloso)
Marginália II (com Gilberto Gil)
Meu choro pra você (com Gilberto Gil)
Minha Senhora (com Gilberto Gil)
Nenhuma dor (com Caetano Veloso)
O bem, o mal (com Sérgio Britto)
O homem que deve morrer (com Nonato Buzar)
O nome do mistério (com Geraldo Azevedo)
Pra dizer adeus (com Edu Lobo)
Quase adeus (com Nonato Buzar e Carlos Monteiro de Sousa)
Que película (com Nonato Buzar)
Que tal (com Luís Melodia)
Rancho da boa-vinda (com Gilberto Gil)
Rancho da rosa encarnada (com Gilberto Gil e Geraldo Vandré)
Soy loco por ti, América (com Gilberto Gil e Capinam)
Todo dia é dia D (com Carlos Pinto)
Três da madrugada (com Carlos Pinto)
Tudo muito azul (com Roberto Menescal)
Um dia desses eu me caso com você (com Paulo Diniz)
Veleiro (com Edu Lobo)
Vem menina (com Gilberto Gil)
Venho de longe (com Gilberto Gil)
Vento de maio (com Gilberto Gil)
Zabelê (com Gilberto Gil)


*Wikipédia


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Vida e Obra
em 17/09/2014 15:25:15 (2590 leituras)
Lupicínio Rodrigues

Lupicínio Rodrigues nasceu em Porto Alegre, 16 de setembro de 1914 e faleceu na mesma cidade em 27 de agosto de 1974, foi um cantor e compositor brasileiro.

Lupe, como era chamado desde pequeno, compôs marchinhas de carnaval e sambas-canção, músicas que expressam muito sentimento, principalmente a melancolia por um amor perdido. Foi o inventor do termo 'dor-de-cotovelo', que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede um uísque duplo, e chora pela perda da pessoa amada. Constantemente abandonado pelas mulheres, Lupicínio buscou em sua própria vida a inspiração para suas canções, onde a traição e o amor andavam sempre juntos.

De 1935 a 1947, trabalhou como bedel da Faculdade de Direito da UFRGS. Nunca saiu de Porto Alegre, a não ser por uns meses em 1939, para conhecer o ambiente musical carioca. Porto Alegre era seu berço querido e todo o seu universo.

Boêmio, foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes com música, que seguidamente ia abrindo e fechando, tudo apenas para ter, antes do lucro, um local para encontro com os amigos.

Torcedor do Grêmio, compôs o hino tricolor, em 1953: Até a pé nós iremos / para que der e vier / Mas o certo é que nós estaremos / com o Grêmio onde o Grêmio estiver. Seu retrato está na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube.

Deixou cerca de uma centena e meia de canções editadas; outras centenas que compôs foram perdidas, esquecidas ou estão à espera de quem as resgate. Encontra-se sepultado no Cemitério São Miguel e Almas em Porto Alegre.

Obras:


Aves daninhas
Cadeira vazia
Cevando o amargo
Ela disse-me assim
Esses moços, pobres moços
Exemplo
Felicidade
Foi assim
Hino do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense
Judiaria
Loucura
Maria Rosa
Migalhas
Nervos de Aço
Nunca
Quem há de dizer
Se acaso você chegasse
Se é verdade
Sozinha
Torre de Babel
Um favor
Vingança
Volta
Zé Ponte


Algumas curiosidades sobre o autor:

Apesar de boêmio, no fim de semana ele virava caseiro

– Quando falam do boêmio, tu sempre imagina um camarada que vive na noite, de bar em bar. Mas ele tinha um lado caseiro muito grande. Ele só era boêmio de segunda a sexta, no fim de semana gostava de reunir a família, fazer churrasco, cozinhar para os amigos. Mais tarde, comprou um sítio na Cavalhada, ali perto da Avenida Otto Niemeyer, onde criava porco, galinha, pato, e adorava essa vida – conta Arthur.

Não podia chegar em casa depois das 4h

– Quando ia para a noite, Lupicínio tinha uma carta de alforria da mulher até as 4h da manhã. Se chegasse às 4h01min, a casa caia. Então, ele tinha uma rotina: chegava em casa pontualmente às 4h, tomava uma sopinha e ia deitar. Perto do meio dia, acordava e ia cozinhar. Almoçava, tirava uma sesta e, pelas 15h, começava o ritual: vestia o melhor terno e saía. Como ele era representante da SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), dava uma passada na sede e, logo depois, ia de bar em bar. Usava como desculpa a função de representante do sindicato, mas era só isto: uma desculpa.

Trabalhou na Carris antes da fama

– Ele chegou a trabalhar na Carris, como auxiliar de mecânico, uma espécie de aprendiz, mas não deu certo. Depois, foi ser bedel da faculdade de direito da UFRGS, aquele cara que fica cuidando dos corredores, faz serviço para os professores. Nessa profissão, ele ficou muito tempo – lembra o diretor.

Seu melhor amigo era um boxeador que cantava na noite

– O maior amigo do Lupi era o Orlando Silva, um cara conhecido como Johnson. Eram corda e caçamba. O Johnson era boxeador, teve até grande destaque em Porto Alegre. E o cara era um doce de pessoa: chegou a apanhar de um amigo em comum deles, e apanhou quieto, porque sabia que era muito mais forte que o outro. O Johnson era um dos maiores intérpretes das composições do Lupicínio, cantava na noite. Era um grande amigo, tanto que as pessoas contam que, no enterro do Lupi, o Johnson não conseguia aceitar que ele estava morto, perdeu totalmente a noção da realidade, a referência.

Era o culpado por falir todos os investimentos em que punha a mão

– Ele foi proprietário de alguns bares e restaurantes. Era sócio do Rubens Santos. Alguns não deram certo, outros duraram mais algum tempo. Mas nenhum existe mais. O Rubens Cardoso reclamava muito, porque o Lupicínio ia de bar em bar e aproveitava para dar uma canja, cantava um pouquinho, e os fãs iam de bar em bar com ele. E acabavam não indo no bar dele! Por essas, que ele faliu algumas vezes...

Foi quase aposentado pela bossa nova e pela jovem guarda

– Na década de 1960, ele foi quase ao ostracismo, sofreu muito com a invasão da jovem guarda, do rock, da tropicália, da bossa nova. O gênero em que ele compunha ficou em segundo plano, principalmente em Porto Alegre. Ele foi voltar só depois, nos anos 1970.

Foi salvo por Caetano Veloso

– Uma vez, ele encontrou Caetano num bar aqui em Porto Alegre. Caetano saiu de um show todo maquiado e a gauchada ficou com o pé um pouco atrás. Baiano, de batom, não foi bem recebido. Mas Lupi o acolheu, eles ficaram uma madrugada inteira conversando. Caetano gravou Felicidade. Foi um marco, porque depois ele começou a ser gravado por Bethânia, Gal, Jamelão, Elza Soares, Elis Regina. Ele acabou voltando. Quando morreu, em 1974, estava no auge de novo.

Aos 14 anos, já circulava pelas rodas de samba (e compunha)

– Lupicínio era um papa-prêmio. Onde ele colocava música, ganhava troféu. Com 14 anos, já estava fazendo samba. O pai viu que o guri não era flor, gostava de samba, de mulher, de noite, já tinha roda de amigos... Tanto que ele gravou o primeiro samba com 14 anos. Gravou e já ganhou prêmio. A música se chamava Carnaval. O pai dele, seu Francisco, preocupado com o futuro do guri, alistou o Lupi no exército. Achou que ia mudar a personalidade dele, só que não deu muito certo. Em Santa Maria, onde ele foi ser praça, acabou formando um grupo de amigos, formou um grupo para passar a noite inteira tocando samba no quartel. O que fazia com que ele passasse o dia inteiro dormindo pelos cantos do quartel, muito mais do que trabalhar.

A dor de cotovelo tinha muito de marketing

Nervos de Aço, Cadeira Vazia e Se Acaso Você Chegasse. A cada experiência amorosa, ele fazia música para sublimar a dor. Mas acho que essa história de dor de cotovelo foi uma escolha bastante profissional, nem tanto de catarse artística. Porque ele viu que fazia sucesso, as pessoas gostavam e compravam, e ele se firmou no gênero. Música de dor de cotovelo era muito bem aceita, as pessoas curtiam – conta Arthur.

Deu o troco em um dono de restaurante racista da melhor maneira possível

– Ele costumava ir ao restaurante de um português em Porto Alegre. Certo dia, o garçom se recusou a atendê-lo, informou que o dono não queria mais receber negros. Lupicínio protestou, chamou a polícia e citou a lei Afonso Arinos (assinada por Getúlio Vargas em 1951, que proíbe a discriminação racial no Brasil), que tinha sido aprovada havia pouco. Isso foi interessante, porque era quase inédito um negro protestar dessa maneira, como também era muito difícil que um delegado acatasse a queixa. O dono do restaurante foi citado judicialmente, respondeu processo. E a vingança do Lupi foi ir em um outro restaurante do mesmo dono, para ser servido por ele.

Este ano comemoramos o seu centenário nascimento.

Fonte: Wikipédia e http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/


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O Ato sem o Fato
em 06/08/2014 19:59:14 (2388 leituras)
Júlio Saraiva

não tenho tempo
nem meias medidas
assim - só - contemplo
minhas mortes
e mil e tantas vidas

tenho soluços
sou rasteiro - homem do povo
e filho da puta
sou um estorvo

mas amo-te tanto cristiane
que o resto enfim e em mim
que se foda e dane

__________

júlio



Fonte: http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... ryid=203724#ixzz39dyihiOO


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Este Não-Futuro que a Gente Vive
em 29/05/2014 20:01:14 (3572 leituras)
Al Berto

Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (...) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (...) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.

Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"


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Uma Nação só Vive porque Pensa
em 24/05/2014 23:21:40 (4200 leituras)
Eça de Queirós

Uma nação só vive porque pensa. Cogitat ergo est. A força e a riqueza não bastam para provar que uma nação vive duma vida que mereça ser glorificada na História - como rijos músculos num corpo e ouro farto numa bolsa não bastam para que um homem honre em si a Humanidade. Um reino de África, com guerreiros incontáveis nas suas aringas e incontáveis diamantes nas suas colinas, será sempre uma terra bravia e morta, que, para lucro da Civilização, os civilizados pisam e retalham tão desassombradamente como se sangra e se corta a rês bruta para nutrir o animal pensante. E por outro lado se o Egipto ou Tunis formassem resplandescentes centros de ciências, de literaturas e de artes, e, através de uma serena legião de homens geniais, incessantemente educassem o mundo - nenhuma nação mesmo nesta idade do ferro e de força, ousaria ocupar como um campo maninho e sem dono esses solos augustos donde se elevasse, para tornar as almas melhores, o enxame sublime das ideias e das formas.

Só na verdade o pensamento e a sua criação suprema, a ciência, a literatura, as artes, dão grandeza aos Povos, atraem para eles universal reverência e carinho, e, formando dentro deles o tesouro de verdades e de belezas que o Mundo precisa, os tornam perante o Mundo sacrossantos. Que diferença há, realmente, entre Paris e Chicago? São duas palpitantes e produtivas cidades - onde os palácios, as instituições, os parques, as riquezas, se equivalem soberbamente. Porque forma pois Paris um foco crepitante de Civilização que irresistivelmente fascina a Humanidade - e porque tem Chicago apenas sobre a terra o valor de um rude e formidável celeiro onde se procura a farinha e o grão?
Porque Paris, além dos palácios, das instituições e das riquezas de que Chicago também justamente se gloria, possui a mais um grupo especial de homens -Renan, Pasteur, Taine, Berthelot, Coppée, Bonnat, Falguières, Gounot, Massenet - que pela incessante produção do seu cérebro convertem a banal cidade que habitam num centro de soberano ensino. Se as Origens do Cristianismo, o Fausto, as telas de Bonnat, os mármores de Falguières, nos viessem de além dos mares, da nova e monumental Chicago - para Chicago, e não para Paris, se voltariam, como as plantas para o Sol, os espíritos e os corações da Terra.
Se uma nação, portanto, só tem a superioridade porque tem pensamento, todo aquele que venha revelar na nossa pátria um novo homem de original pensar concorre patrioticamente para lhe aumentar a única grandeza que a tornará respeitada, a única beleza que a tornará amada; - e é como quem aos seus templos juntasse mais um sacrário ou sobre as suas muralhas erguesse mais um castelo.

Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'


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O meu carácter
em 15/05/2014 11:41:57 (3087 leituras)
Fernando Pessoa

O Meu Carácter Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por de mais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) - por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito.

Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil interassociações, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.

O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção - enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.

Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus - mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.

Fernando Pessoa, in 'Notas Autobiográficas e de Autognose'


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O Caminho da Felicidade
em 02/05/2014 13:31:23 (3561 leituras)
Friedrich Nietzsche

Um sábio perguntava a um louco qual era o caminho da felicidade. O louco respondeu-lhe imediatamente, como alguém a quem se pergunta o caminho da cidade vizinha: «Admira-te a ti mesmo e vive na rua». «Alto lá», exclamou o sábio, «pedes demais, basta já que nos admiremos!» E o louco respondeu logo: «Mas como admirar sem cessar se não nos desprezarmos constantemente?»

Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"


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Poema para grande orquestra parada – um silêncio bem alto
em 26/04/2014 16:36:41 (2583 leituras)
Millôr Fernandes


Você já amou uma mulher brilhante.
Você já amou uma mulher formosa.
Você já amou uma mulher
Silenciosa?
Que fala pouco.
E bem,
E baixo,
Que não eleva a voz por raiva
Nem má educação,
Que anda com seus pés de seda
Num mundo de algodão.
Que não bate, fecha a porta,
Como quem fecha o casaco
De um filho
(Ou abre um coração)?
Que quando fala, se aproxima
Ao alcance da mão
Pra que a voz não se transforme em grito?
E que absorve o mundo
Sem re-percussão
Num olhar de preguiça
Num colchão de cortiça
Como um mata-borrão?

Mas um dia ela sai
Levando o seu silêncio
De pingüim andando solitário em
sua Antártica
(ou Antártida),
No eterno
Gelo sobre gelo
No infinito
Branco sobre branco
E dos cantos e recantos
Onde habitou calada
- entre oniausente -
Brotam aos poucos,
Os ruídos
Pisados,
Colocados embaixo do tapete
Guardados na despensa
Na gaveta mais funda
De uma vida em comum.
Os trincos falam,
A cafeteira chia,
A espreguiçadora range,
O telefone toca,
As louças tinem,
O relógio bate,
O cão ladra,
O rádio mia,
Toda a casa ressoa, reverbera
e brada
E a orquestra em pleno do teu
dia-a-dia
Ataca a algaravia
Fabril
Escondida no lençol de silêncio
Com que ela partiu.



De Millôr Fernandes (1923-2012), em seu livro Poemas (1999)


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Uma Alma Amante e Terna
em 13/04/2014 15:21:53 (2450 leituras)
Fernando Pessoa

Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha — solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no mau carácter um elemento da natureza inteiramente oposto, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.

Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação'


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Sabedoria do Mundo
em 12/04/2014 17:07:02 (2111 leituras)
Friedrich Nietzsche

Não fiques em terreno plano.
Não subas muito alto.
O mais belo olhar sobre o mundo
Está a meia encosta.


Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"


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SONETO 96
em 11/04/2014 14:44:37 (3266 leituras)
William Shakespeare

Soneto 96


De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça. Amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
È astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe nenhuma idade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma, para a eternidade.
Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.


Fonte: http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... toryid=1759#ixzz2vcHzPkVn


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Elegia sobre os meus dias contados
em 11/04/2014 14:40:29 (1856 leituras)
Júlio Saraiva

Elegia sobre os meus dias contados

"De tão lúcido, sinto-me irreal."
  - Dante Milano -


meu barco navega sobre os meus dias contados
com a calma de quem perdeu o medo do mar
não careço bússola - deixo-me conduzir pelas estrelas
e rio por saber-me um homem do passado

como prenda levo a lembrança dos meus mortos
as muitas bocas que a timidez me impediu beijar
as lágrimas que guardei e esqueci de derramá-las
as inoportuníssimas gargalhadas de deboche
alguns pedidos de desculpa levo comigo também

minha insaciável vontade de beber deixo por aqui
quem se interessar por ela faça bom proveito
(pode ser útil nos momentos de vazio absoluto)
meu livro de sonhos e meu canivete suíço
meu relógio que parou num meio-dia qualquer
pensei em deixar mas por capricho mudei de ideia
pequenos caprichos valem mais que uma fortuna

meu barco navega sobre os meus dias contados
com a calma de quem perdeu o medo do mar

-----------------------

Elegia sui miei giorni contati

La mia nave naviga sui miei giorni contati
con la calma di chi ha perso la paura del mare
non mi serve la bussola - mi lascio guidare dalle stelle
e me ne infischio di passare per un uomo del passato

come ricordo mi porto la memoria dei miei morti
le molte bocche che la timidezza m’impedì di baciare
le lacrime che conservai e dimenticai di versare
le inopportunissime risate di depravazione
anche qualche richiesta di scuse porto con me

la mia insaziabile voglia di bere la lascio qui
chi fosse interessato ne faccia buon uso
(può essere utile nei momenti di vuoto assoluto)
il mio libro dei sogni e il mio coltellino svizzero
il mio orologio che si fermò un mezzogiorno qualunque
pensai di lasciarli ma per capriccio ho cambiato idea
piccoli capricci valgono più di una fortuna

La mia nave naviga sui miei giorni contati
con la calma di chi ha perso la paura del mare

(Tradução italiana de Manuela Colombo)

http://www.currupiao.blogspot.it/sear ... 0:00-02:00&max-results=50


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Ainda que Mal
em 05/04/2014 00:00:53 (2471 leituras)
Carlos Drummond de Andrade

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'


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O Engano da Bondade
em 27/02/2014 21:16:15 (4944 leituras)
Pablo Neruda

Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra.
Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não flexíveis e submissos.
Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre - ou quase sempre - mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estuta estupidez.
Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida.
E, assim, só se chamarão bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reinvindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.

Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer"


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O Sonho é a Pior das Cocaínas
em 13/02/2014 10:16:03 (3266 leituras)
Fernando Pessoa

O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate – mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.

Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'


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Romance da Lua Lua
em 30/01/2014 15:58:23 (5530 leituras)
 Federico García Lorca


ROMANCE DA LUA LUA
(frevo)

Sobre a frágua veio a lua
com seus babados de renda.
O menino mira, mira.
O menino a está mirando.

No ar súbito, comovido,
a lua move seus braços
e mostra, lúbrica e pura,
os seios de duro estanho.

Foge, lua, lua, lua.
Se viessem os ciganos,
com teu coração fariam
anéis e colares brancos.

Oh, foge lua, lua, lua.
Quando vierem os ciganos,
te acharão sobre a bigorna,
com teus olhinhos fechados.

Foge, lua, lua, lua.
Que já sinto seus cavalos.
Deixa-me, filho, não pises
o meu alvor engomado.

Vinha perto o cavaleiro,
o tambor do chão tocando.
E, dentro da frágua, o menino
tem seus olhinhos fechados.

Pelo oliveiral, bronze e sonho,
eles vinham, os ciganos.
As cabeças para cima
e os olhos sempre-cerrados.

Foge lua, lua, lua,

E dentro da frágua choram,
dando gritos os ciganos.
O ar da noite vela, vela.
O ar da noite está velando.

Ai!! Como canta a coruja,
como canta no galho!
Através do céu, a lua
vai o menino levando

Foge lua, lua, lua.


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A Voz do Amor
em 13/01/2014 12:21:08 (3480 leituras)
Olavo Bilac

Nessa pupila rútila e molhada,
Refúgio arcano e sacro da Ternura,
A ampla noite do gozo e da loucura
Se desenrola, quente e embalsamada.

E quando a ansiosa vista desvairada
Embebo às vezes nessa noite escura,
Dela rompe uma voz, que, entrecortada
De soluços e cânticos, murmura...

É a voz do Amor, que, em teu olhar falando,
Num concerto de súplicas e gritos
Conta a história de todos os amores;

E vêm por ela, rindo e blasfemando,
Almas serenas, corações aflitos,
Tempestades de lágrimas e flores...

Olavo Bilac, in "Poesias"


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Hoje...
em 04/12/2013 22:36:54 (3412 leituras)
Miguel Torga

"Hoje declarei em casa de uns amigos que a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua intimidade. Escrever versos diante dela é qualquer coisa como parir com um Cristo à cabeceira da cama."


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A Minha Lista dos Grandes Autores
em 23/11/2013 12:45:30 (1876 leituras)
José Saramago

Uma revista espanhola teve a ideia de pedir a uns quantos escritores que elaborassem a sua árvore genealógica literária, isto é, a que outros autores consideravam eles como avoengos seus, directos ou indirectos, excluindo-se do inventado parentesco, obviamente, qualquer presunção de relações ou equivalências de mérito que a realidade, pelo menos no meu caso, logo se encarregaria de desmentir. Também se pedia que, em brevíssimas palavras, fosse dada a justificação dessa espécie de adopção ao contrário, em que era o «descendente» a escolher o «ascendente». A cada escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão-de vir a aparecer os retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respectiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no «Ano da Morte de Ricardo Reis», todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que não é preciso ser-se génio para escrever um livro genial, o «Húmus»; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é um coleóptero; Eça de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luis Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e achou-a triste.

José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1996)'


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A Opinião Pura e Elevada
em 16/10/2013 21:24:06 (1809 leituras)
Agostinho da Silva

A opinião que se emite ou a regra que se estabelece não tem que se importar com as circunstâncias em que se encontram os homens nem com as possibilidades de acolhimento ou recusa que o mundo lhe oferece; o que é hoje grão seco levanta-se amanhã sobre as ondas do campo como a espiga mais alta e mais cheia; o culto da verdade não se compadece com a adoração dos deuses que presidem aos dias nem com a vã agitação que é de regra no formigueiro humano; cada um tomará o que se diz como quiser; a sua atitude, porém, só interessará enquanto fenómeno base para uma nova legalidade.
Não há aqui nem indiferença, nem egoísmo; é mais larga a alma que a par do amor dos homens actuais sente vibrar o amor dos homens do futuro, mais forte o espírito que se orienta para o eterno; a justiça sempre o terá a seu lado armado de todas as armas, não porque sinta para ela um impulso momentâneo mas porque a defende em qualquer tempo; e sempre se há-de recusar, sejam quais forem as razões, a passar em claro uma injustiça ou a servir-se de qualquer meio, apenas porque tal proceder se aparenta vantajoso aos seus interesses ou aos interesses dos seus amigos.

O compromisso pode tornar-se necessário para que a vida se mantenha; mas já essa mesma vida é grande e bela só quando, pelo menos, tende à rigidez das regras absolutas; e a superioridade das nações, a superioridade que há-de acabar por triunfar, consiste no maior número de espíritos que são capazes de optar pela norma quando ela se encontra em conflito com a vida. Quem pretende servir os homens tem aí a melhor dádiva a fazer-lhes: a de se manter sem desvio nas épocas piores, quando todos os outros recorreram ao subterfúgio e a todos cegou a mesma escuridão de um mal presente.

Agostinho da Silva, in 'Considerações'


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O Pessimismo é Excelente para os Inertes
em 02/10/2013 12:26:17 (2924 leituras)
Eça de Queirós

O Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal, a lei própria da Vida; portanto lhe tira o carácter pungente de uma injustiça especial, cometida contra o sofredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal sobretudo nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho - porque nos sentimos escolhidos e destacados para a Infelicidade, podendo, como ele, ter nascido para a Fortuna. Quem se queixaria de ser coxo - se toda a humanidade coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve e friagem e borrasca de um Inverno especial, organizado nos céus para o envolver a ele unicamente - enquanto em redor toda a humanidade se movesse na benignidade de uma Primavera? (...) O Pessimismo é excelente para os Inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da Inércia.

Eça de Queirós, in 'A Cidade e as Serras'


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Emprego e Desemprego do Poeta
em 22/08/2013 20:45:24 (1557 leituras)
Ruy Belo

Deixai que em suas mãos cresça o poema
como o som do avião no céu sem nuvens
ou no surdo verão as manhãs de domingo
Não lhe digais que é mão-de-obra a mais
que o tempo não está para a poesia

Publicar versos em jornais que tiram milhares
talvez até alguns milhões de exemplares
haverá coisa que se lhe compare?
Grandes mulheres como semiramis
públia hortênsia de castro ou vitória colonna
todas aquelas que mais íntimo morreram
não fizeram tanto por se imortalizar

Oh que agradável não é ver um poeta em exercício
chegar mesmo a fazer versos a pedido
versos que ao lê-los o mais arguto crítico em vão procuraria
quem evitasse a guerra maiúsculas-minúsculas melhor
Bem mais do que a harmonia entre os irmãos
o poeta em exercício é como azeite precioso derramado
na cabeça e na barba de aarão

Chorai profissionais da caridade
pelo pobre poeta aposentado
que já nem sabe onde ir buscar os versos
Abandonado pela poesia
oh como são compridos para ele os dias
nem mesmo sabe aonde pôr as mãos

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"


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O mundo só se dá para os simples
em 20/08/2013 15:04:06 (2929 leituras)
Clarice Lispector

Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim, é livre. Mas como foi que transformei sem nem sentir a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não era uma doçura de amor pelo mundo: era uma avidez de luxúria pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo me espantava na minha insónia sem eu entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que até se dorme.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1971)'


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Grandeza do Homem
em 30/07/2013 16:16:04 (2264 leituras)
Ruy Belo

Somos a grande ilha do silêncio de deus
Chovam as estações soprem os ventos
jamais hão-de passar das margens
Caia mesmo uma bota cardada
no grande reduto de deus e não conseguirá
desvanecer a primitiva pegada
É esta a grande humildade a pequena
e pobre grandeza do homem

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"


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Conheço o Sal
em 13/07/2013 17:44:12 (2278 leituras)
Jorge de Sena



Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.


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Iluminuras
em 06/07/2013 17:43:35 (2263 leituras)
Arthur Rimbaud

ILUMINURAS
Artur Rimbaud

DEPOIS DO DILÚVIO Assim que a ideia do Dilúvio sossegou, Uma lebre se deteve entre trevos e campânulas cambiantes, e fez sua prece ao arco-íris, através da teia de aranha. Oh! as pedras preciosas que se escondiam,
- e as flores que já olhavam. Na grande rua suja açougues se abriram, e barcos foram lançados nos degraus do mar lá no alto como nas gravuras. O sangue correu, no Barba-Azul,
- nos matadouros,
- nos circos, onde o selo de Deus empalidecia as janelas. O sangue e o leite correram. Castores construíram. "Mazagrans" enfumaçaram os botecos. Na imensa mansão de vidros ainda gotejantes, meninos de luto admiram imagens maravilhosas.

Uma porta bateu,
- e sobre a praça da vila, o menino girou os braços, compreendidos os cata-ventos e galos dos campanários de toda parte, sob um temporal cintilante. Madame *** instalou um piano nos Alpes. A missa e as primeiras comunhões foram celebradas nos cem mil altares da catedral. As caravanas partiram. E o Splendide-Hotel foi erguido no caos de gelo e da noite polar. Desde então, a Lua ouviu o uivo dos chacais nos desertos de timo,
- e écoglas de tamancos grunhindo no pomar. Depois, na floresta violeta, florescente, Êucaris me disse que era a primavera.
- Lago, salte,
- Espuma, role sobre aponte e por cima desses bosques;
- panos negros e órgãos,
- trovão e raio,
- subam e rolem;
- águas e tristeza, subam e renovem esses Dilúvios. Pois desde que dissiparam,
- Oh as pedras preciosas se enterrando, e as flores se abrindo!
- tudo é um tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa num pote de barro, não vai querer jamais nos contar tudo o que sabe, e que nós ignoramos.


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O Inferno de Ser Eu
em 27/06/2013 19:41:49 (3203 leituras)
Fernando Pessoa

Ficarei o Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta, Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo, mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do próprio mistério, da própria Vida. Habitarei eternamente o deserto morto de mim, erro abstracto da criação que me deixou atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia (estéril) do regresso a ser.
Não poderei sentir porque não terei matéria com que sinta, não poderei respirar alegria, ou ódio, ou horror, porque não tenho nem a faculdade com que o sinta, consciência abstracta no inferno do não conter nada, não-Conteúdo Absoluto, [Sufocação] absoluta e eterna! Oco de Deus, sem universo, (...).

Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1915)'
Tema(s): Auto-conhecimento


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Como Amo
em 10/06/2013 23:10:16 (3182 leituras)
Clarice Lispector

Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se sempre eu soube usar a palavra — embora às vezes gaguejando — então sou uma criminosa se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim. O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto: amor pelos outros?
Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo.
Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a lua cheia — sou muito mais lunar que solar. É uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever: eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo? Mas dizer «eu vos amo» é quase mais do que posso suportar! Dói. Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a esperar.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1968)'


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Canção dos romances perdidos
em 05/06/2013 18:13:39 (3227 leituras)
Mario Quintana

Oh! o silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...

O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...

Aquela última estrela
Que bale, bale, bale,
Perdida na enchente da luz...

Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos
De onde fugiram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos...

E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!...


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Quando me amei de verdade
em 28/05/2013 16:08:29 (4778 leituras)
Outros Autores

Quando me amei de verdade, deixei de me contentar com pouca coisa.

Quando me amei de verdade, tomei contato com a minha própria bondade.

Quando me amei de verdade, comecei a valorizar o dom da vida com a maior gratidão.

Quando me amei de verdade, pude compreender que, em qualquer circunstância, eu estava no lugar certo, na hora certa. Então, pude relaxar.

Quando me amei de verdade, consegui moderar meu ritmo e minha pressa.
E isso fez uma enorme diferença na minha vida.

Quando me amei de verdade, aprendi a gostar de estar sozinha, rodeada pelo silêncio, usufruindo sua magia, prestando atenção ao meu espaço interior.

Quando me amei de verdade, percebi que posso não ser uma pessoa especial, mas que sou única.


Quando me amei de verdade, reformulei meu conceito de sucesso e a vida ficou mais simples.
Ah, quanto prazer isso me trouxe!

Quando me amei de verdade, entendi que sou digna de conhecer Deus diretamente.

Quando me amei de verdade, comecei a ver que eu não tinha de sair em busca da vida.
Se eu ficar quieta e parada, a vida vem até mim.

Quando me amei de verdade, deixei de achar que a vida é dura, e pude perceber que o sofrimento emocional é um sinal de que estou indo contra a minha verdade.

Quando me amei de verdade, aprendi a satisfazer meus desejos, sem achar que era egoísmo.


Quando me amei de verdade, partes minhas que eu ignorava desistiram de disputar minha atenção.
Foi o início da paz interior. Comecei então a ver tudo mais claro.

Quando me amei de verdade, comecei a perceber que os desejos do coração acabam se realizando e passei a ter mais calma e paciência, exceto quando esqueço disso.

Quando me amei de verdade, desisti de ignorar ou de suportar meu sofrimento.
Comecei a perceber todos os meus sentimentos, sem analisá-los. Sentindo-os de verdade.
Quando faço isso, acontece uma coisa incrível. Experimente. Você vai ver.

Quando me amei de verdade, meu coração se encheu de tanta ternura que pôde acolher tanto
a alegria quanto a tristeza.

Quando me amei de verdade, comecei a meditar diariamente, e descobri que este é um ato de
profundo amor por mim mesma.

Quando me amei de verdade, sempre que fico ansiosa, zangada, inquieta ou triste, pergunto a mim mesma: “Quem, dentro de mim, está se sentindo assim?”
Se eu escutar com paciência, descubro quem é que precisa do meu amor.

Quando me amei de verdade, deixei de precisar das coisas e das pessoas para me sentir segura.


Quando me amei de verdade, parei de desejar que a minha vida fosse diferente e comecei a ver que tudo o que acontece contribui para o meu crescimento.

Quando me amei de verdade, comecei a entender a complexidade, o mistério e a vastidão da minha alma.
Que tolice pensar que posso conhecer o sentido da vida de alguém!

Quando me amei de verdade, desisti de projetar nos outros as minhas forças e fraquezas, e guardei-as comigo.

Quando me amei de verdade, comecei a perceber uma presença divina dentro de mim e a ouvir sua orientação. Estou aprendendo a confiar e a viver de acordo com ela.

Quando me amei de verdade, desisti de ficar exausta por me empenhar tanto. Comecei a sentir uma comunidade dentro de mim. Essa equipe interna, com múltiplos talentos e características próprias, é a
minha força e o meu potencial. Fazemos reuniões de equipe.

Quando me amei de verdade, parei de me culpar pelas escolhas que fiz e que me faziam sentir segura.
Passei a me responsabilizar por elas.

Quando me amei de verdade, comecei a perceber como é ofensivo tentar forçar alguma coisa ou alguém que ainda não está preparado. Inclusive eu mesma.
Quando me amei de verdade, passei a caminhar todos os dias, a usar a escada em vez do elevador e a escolher sempre o caminho mais bonito.

Quando me amei de verdade, passei a ser a minha própria autoridade, ouvindo apenas a sabedoria do meu coração. É assim que Deus fala comigo.
Isso é o que se chama de intuição.

Quando me amei de verdade, comecei a sentir um grande alívio. O meu lado impulsivo aprendeu
a esperar pelo momento certo. Então eu me tornei lúcida e corajosa. E passei a aceitar o inaceitável.

Quando me amei de verdade, comecei a ver que o meu ego é parte da minha alma.
Ao perceber isso, meu ego perdeu sua estridência e paranoia e pôde me servir melhor.

Quando me amei de verdade, comecei a me livrar de tudo que não fosse saudável.
Isso quer dizer: pessoas, tarefas, crenças e hábitos - qualquer coisa que me pusesse pra baixo.
Minha razão chamou isso de egoísmo.
Mas hoje eu sei que é amor-próprio.

Quando me amei de verdade, consegui falar a verdade sobre meus talentos e minhas limitações.

Quando me amei de verdade, consegui ter consciência, nos períodos de confusões, disputas ou desgostos,
de que essas coisas também fazem parte de mim e merecem o meu amor.

Quando me amei de verdade, passei a saber qual era o meu objetivo e a me afastar suavemente das distrações.

Quando me amei de verdade, vi que tudo a que eu resistia persistia. Igual a uma criança pequena dando puxões na minha saia. Hoje, quando a resistência fica me puxando, eu olho para ela e afasto-a gentilmente.

Quando me amei de verdade, aprendi a dizer não quando quero e a dizer sim quando quero.

Quando me amei de verdade, passei a encontrar um prazer cada vez maior na solidão e a usufruir a inexplicável e profunda satisfação que sua companhia traz.

Quando me amei de verdade, confessei serenamente minha coragem e meu medo, minha ingenuidade e minha sabedoria, e arranjei um lugarzinho para cada um em volta da minha mesa.

Quando me amei de verdade, descobri as lições que a minha raiva me dá sobre responsabilidade, e a minha arrogância, sobre humildade.
Agora ouço as duas com muita atenção.

Quando me amei de verdade, desisti de querer ter sempre razão, e com isso
errei muito menos vezes.

Quando me amei de verdade, aprendi a chorar as dores da vida no momento em que elas acontecem, em vez de sobrecarregar meu coração arrastando-as por aí.

Quando me amei de verdade, comecei a ouvir a sabedoria do meu corpo. Ele fala claramente através do cansaço, das sensações, das antipatias e dos desejos.

Quando me amei de verdade, deixei de ter medo do medo.

Quando me amei de verdade, desisti de ficar revivendo o passado e de me preocupar com o futuro.
Isso me mantém no presente, que é onde a vida acontece.

Quando me amei de verdade, percebi que a minha mente pode me atormentar e me decepcionar.
Mas quando eu a coloco a serviço do meu coração, ela se torna uma grande e valiosa aliada.


por Kim McMillen - do Livro "Quando me amei de verdade"


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O Poeta canta a si mesmo
em 27/05/2013 22:39:04 (2385 leituras)
Mario Quintana

O poeta canta a si mesmo
porque nele é que os olhos das amadas
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo
porque num seu único verso
pende - lúcida, amarga -
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo
a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por nascer está tentando agora ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo disperso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.

(Esconderijos do Tempo)


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CANÇÃO PARA A MINHA VIÚVA
em 19/05/2013 01:42:06 (1385 leituras)
Júlio Saraiva

Canção para a Minha Viúva

quando for chegada a hora
de vestirem-me a mortalha
não faz da minha morte amor
teu cavalo de batalha

deves chorar mas bem pouco
e de maneira discreta
três lágrimas pelo louco
cinco ou seis pelo poeta

seja tudo sem delongas
poupa-me desses horrores
das inúteis preces longas
e das coroas de flores

livra-me das frases feitas
na verdade nunca fui bom
mas enfeita a minha testa
com a marca do teu batom

por mim ficas dispensada
da condição de viúva
desejo que minha morte
caia-te como uma luva

se acaso sobrar dinheiro
não maldiz a tua sina
laça de cara o primeiro
e vai com ele pra china


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Namorados do Mirante
em 03/05/2013 19:53:57 (2511 leituras)
Vinícius de Moraes

Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
Remontavam às origens - a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie - tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas no magma incandescente
Que milênios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silêncio...



Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'


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Para ler ouvindo um Tango
em 25/04/2013 13:51:54 (1819 leituras)
Júlio Saraiva

gosto quando me fisgas com as tuas fugas
e sem querer querendo corres e me escapas
procuro-te em vão nos imaginários mapas
perdidos no meu rosto coberto de rugas

tal como num tango me sangras e me sugas
envolves o meu corpo nessas negras capas
tecidas em cetins ou ordinárias napas
restos de funerais que por bom preço alugas

gosto quando me matas em lentas facadas
e no dia seguinte surges em sorrisos
depois de reduzir-me a todos os nadas

me cobres a boca com beijos tão precisos
oferecendo-me o bom mel das madrugadas
que eu faço que apago todos os prejuízos


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de Sapato Florido
em 17/04/2013 19:53:20 (5636 leituras)
Mario Quintana

PROVÉRBIO
O seguro morreu de guarda-chuva.


MEU TRECHO PREDILETO
O que mais me comove, em música,
são essas notas soltas — pobres notas únicas —
que do teclado arrancam o afinador de pianos...


CARRETO
Amar é mudar a alma de casa.


ENVELHECER
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.




Versos extraídos do livro “Mário Quintana — Prosa e Verso”, Editora Globo (9ª edição).


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Poema do Futuro
em 16/04/2013 14:00:35 (2539 leituras)
António Gedeão

Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exhumado
da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.

António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'


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Biografia
em 07/08/2023 19:37:10 (256 leituras)
Cruz e Souza

João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro, 24 de novembro de 1861 — Curral Novo, 19 de março de 1898) foi um poeta brasileiro. Com a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro, foi um dos principais representantes do simbolismo no Brasil.

Segundo Antonio Candido, Cruz e Sousa foi o "único escritor eminente de pura raça negra na literatura brasileira, onde são numerosos os mestiços".

Nasceu dia 24 de novembro de 1861, filho dos escravos alforriados Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e Carolina Eva da Conceição. João da Cruz desde pequeno recebeu a tutela e uma educação refinada do ex-senhor de seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa - de quem adotou o nome de família, Sousa. A esposa de Guilherme Xavier de Sousa, Dona Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, não tinha filhos, e passou a proteger e cuidar da educação de João. Aprendeu francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão Fritz Müller, com quem aprendeu Matemática e Ciências Naturais.

Em 1881, dirigiu o jornal Tribuna Popular, no qual combateu a escravidão e o preconceito racial. Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em 1885, lançou o primeiro livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea. Cinco anos depois foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, colaborando também com diversos jornais. Em fevereiro de 1893, publicou Missal (prosa poética baudelairiana) e em agosto, Broquéis (poesia), dando início ao simbolismo no Brasil que se estende até 1922. Em novembro desse mesmo ano casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, com quem teve quatro filhos, todos mortos prematuramente por tuberculose, levando-a à loucura.

Morreu a 19 de março de 1898 em Minas Gerais, na localidade de Curral Novo, então pertencente ao município de Barbacena. Em 1948, a localidade se emancipou e passou a se chamar Antônio Carlos. Cruz e Sousa estava em Curral Novo pois fora transportado às pressas vencido pela tuberculose. Teve o seu corpo transportado para o Rio de Janeiro em um vagão destinado ao transporte de cavalos. Ao chegar, foi sepultado no Cemitério de São Francisco Xavier por seus amigos, dentre eles José do Patrocínio, onde permaneceu até 2007, quando seus restos mortais foram então acolhidos no Palácio Cruz e Sousa, antigo palácio de governo do estado de Santa Catarina e atual Museu Histórico de Santa Catarina, no centro de Florianópolis.

Cruz e Sousa é um dos patronos da Academia Catarinense de Letras, representando a cadeira número 15.

Seus poemas são marcados pela musicalidade (uso constante de aliterações), pelo individualismo, pelo sensualismo, às vezes pelo desespero, às vezes pelo apaziguamento, além de uma obsessão pela cor branca. É certo que encontram-se muitas referências à cor branca, assim como à transparência, à translucidez, à nebulosidade e aos brilhos, e a muitas outras cores, todas sempre presentes em seus versos.

No aspecto de influências do simbolismo,nota-se uma amálgama que conflui águas do satanismo de Charles Baudelaire ao espiritualismo (e dentro desse, ideias budistas e espíritas) ligados tanto à tendências estéticas vigentes como às fases na vida do autor.

Embora quase metade da população brasileira seja não branca, poucos foram os escritores negros, mulatos ou indígenas. Cruz e Sousa, por exemplo, é acusado de ter-se omitido quanto a questões referentes à condição negra. Mesmo tendo sido filho de escravos e recebido a alcunha de "Cisne Negro", o poeta João da Cruz e Sousa não conseguiu escapar das acusações de indiferença pela causa abolicionista. A acusação, porém, não procede, pois, apesar de a poesia social não fazer parte do projeto poético do simbolismo nem de seu projeto particular, o autor, em alguns poemas, retratou metaforicamente a condição do escravo. Cruz e Sousa militou, sim, contra a escravidão.Tanto da forma mais corriqueira, fundando jornais e proferindo palestras por exemplo, participando, curiosamente, da campanha antiescravagista promovida pela sociedade carnavalesca Diabo a quatro, quanto nos seus textos abolicionistas, demonstrando desgosto com a condução do movimento pela família imperial.[4]

Quando Cruz e Sousa diz "brancura", é preciso recorrer aos mais altos significados desta palavra, muito além da cor em si.


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O Mapa
em 08/07/2023 20:00:00 (149 leituras)
Mario Quintana

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...


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Poema Sujo (Trecho)
em 17/03/2023 12:14:53 (273 leituras)
Ferreira Gullar

Poema sujo (trecho)

turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro:
menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma?
claro mais que claro claro:
coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho
que o universo fabrica
e vem sonhando
desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva
igual a tua bocetinha
que parecia sorrir entre
as folhas de banana
entre os cheiros de flor
e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo
(não como a tua boca de palavras)
como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão
de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão
de tanta noite e tanto dia


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Ausência
em 16/03/2023 23:59:57 (276 leituras)
José Bonifácio de Andrada e Silva - O moço


Pode o Fado cruel com mão ferrenha,
Eulina amada, meu encanto e vida,
Abafar este peito e sufocar-me!
Que pretende o Destino? em vão presume
Rasgar do meu o coração de Eulina,
Pois fazem sós um coração inteiro!
alma impressa,
Tu desafias, tu te ris do Fado.
Embora contra nós ausência fera,
Solitárias campinas estendidas,
Serras alpinas, áridos desertos,
Largos campos da cérula Amphitrite
Dois corpos enlaçados separando,
Conspirem-se até mesmo os Céus Tiranos.
Sim, os Céus! Ah! parece que nem sempre
Neles mora a bondade! Escuro Fado
Os homens bandeando, como o vento
Os grãos de areia sobre a praia infinda
Dos míseros mortais brinca e os males
Se tudo pode, isto não pode o Fado!
Sim, adorada, angelical Eulina.
Eterna viverás a esta alma unida,
Eterna! pois as almas nunca morrem.
Quando os corpos não possam atraídos
Ligarem-se em recíprocos abraços,
(Que prazer, minha amada! O Deus Supremo,
Quando fez com a voz grávido o Nada,
Maior não teve) podem nossas almas,
A despeito de mil milhões de males,
Da mesma morte. E contra nós que vale?
Do sangrento punhal, que o Fado vibre,
Quebrar a ponta; podem ver os Mundos
Errar sem ordem pelo espaço imenso;
Toda a Matéria reduzir-se em nada,
E podem ainda nossas almas juntas,
Em amores nadar de eterno gozo!

Em Paris, no ano de 1790
Publicado no livro Poesias Avulsas de Américo Elísio (1825).


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Fim
em 14/03/2023 15:13:56 (237 leituras)
Mário de Sá-Carneiro





Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Mário de Sá Carneiro




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Cogito
em 09/06/2017 03:14:43 (5168 leituras)
Torquato Neto

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim

(Os últimos dias de paupéria, 1982)


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A casada infiel
em 01/06/2015 17:20:27 (2594 leituras)
 Federico García Lorca

E eu que fui levá-la ao rio
Certo de que era donzela,
Mas bem que tinha marido.
Foi a noite de São Tiago
E quase por compromisso.
As lâmpadas se apagaram
E se acenderam os grilos.
Já nas últimas esquinas
Toquei seus peitos dormidos,
Que de pronto se me abriram
Como ramos de jacinto.
A goma de sua anágua
Vinha ranger-me no ouvido
Como seda que dez facas
Rasgassem em pedacinhos.
Sem luz de prata nas copas
As árvores têm crescido
E um horizonte de cães
Ladra bem longe do rio

Após franqueadas as brenhas,
Franqueados juncos e espinhos,
Por baixo de seus cabelos
Fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou seu vestido.
Eu, cinturão e revolver.
Ela, seus quatro corpinhos.

Nem nardos nem caracóis
Têm cútis com tanto viço,
Nem os cristais sob a lua
Alumbram com igual brilho.
Sua coxas me escapavam
Como peixes surpreendidos,
Metade cheias de lume,
Metade cheias de frio.
Galopei naquela noite
Pelo melhor dos caminhos,
Montado em potra nácar
Sem rédeas e sem estribos.
As coisas que ela me disse,
Por ser homem não repito
Faz a luz do entendimento
Que eu seja assim comedido.
Suja de beijos e areia,
Eu levei-a então do rio.
Contra o vento se batiam
As baionetas dos lírios

Portei-me como quem sou.
Como gitano legítimo.
Dei-lhe cesta de costura,
Grande, de cetim palhiço,
E não quis enamorar-me,
Pois ela, tendo marido,
Me disse que era donzela
Quando eu a levava ao rio.


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As Iluminações
em 17/04/2015 23:41:28 (1915 leituras)
Lêdo Ivo

As Iluminações
Desabo em ti como um bando de pássaros.

E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.

Soma do céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsálício.

Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.


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Os morcegos
em 17/04/2015 23:37:27 (1559 leituras)
Lêdo Ivo

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteira no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
“Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz do
[farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda o dia
[ofendido.

ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

(Lêdo Ivo em Textos Escolhidos - Academia Brasileira de Letras)


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A Queimada
em 16/04/2015 02:13:07 (1589 leituras)
Lêdo Ivo


Queime tudo o que puder:
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos: more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.


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AS POMBAS E A CATEDRAL
em 11/04/2015 01:15:58 (2397 leituras)
Júlio Saraiva

as pombas da praça da sé falam
um silêncio alto mas só as pedras
da catedral conseguem ouvir

as pedras da catedral da sé relembram
para as pombas histórias de um tempo
nublado que trazem vivas na memória

ao anoitecer as pombas da praça da sé
ficam tristes como as mulheres que perderam
o paradeiro de seus maridos e filhos

as pedras da catedral da sé consolam as pombas
recitando trechos de missas antigas
as pombas respondem amém choram um pouco
e vão dormir enquanto a catedral permanece
acordada em sua eterna vigília



* http://currupiao.blogspot.com.br/


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Vida e Obra
em 12/01/2015 19:43:47 (1722 leituras)
Lêdo Ivo

Quinto ocupante da Cadeira nº 10, eleito em 13 de novembro 1986, na sucessão de Orígenes Lessa e recebido em 7 de abril de 1987 pelo acadêmico Dom Marcos Barbosa. Recebeu os acadêmicos Geraldo França de Lima, Nélida Piñon e Sábato Magaldi. Faleceu em 23 de dezembro de 2012, em Sevilha, Espanha, aos 88 anos.
Lêdo Ivo nasceu no dia 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL), filho de Floriano Ivo e Eurídice Plácido de Araújo Ivo. Casado com Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo (1923-2004), tem o casal três filhos: Patrícia, Maria da Graça e Gonçalo.
Fez os cursos primário e secundário em sua cidade natal. Em 1940, transferiu-se para o Recife, onde ocorreu sua primeira formação cultural. Em 1941, participou do I Congresso de Poesia do Recife. Em 1943 transferiu-se para o Rio de Janeiro e se matriculou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, pela qual se formou. Passou a colaborar em suplementos literários e a trabalhar na imprensa carioca, como jornalista profissional.
Em 1944, estreou na literatura com As Imaginações, poesia, e no ano seguinte publicou Ode e Elegia, distinguido com o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras. Nos anos subseqüentes, sua obra literária avoluma-se com a publicação de livros de poesia, romance, conto, crônica e ensaio.
Em 1947, seu romance de estréia As Alianças mereceu o Prêmio de Romance da Fundação Graça Aranha. Em 1949, pronunciou, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, a conferência “A geração de 1945”. Nesse ano, formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, mas nunca advogou, preferindo continuar exercendo o jornalismo.
No início de 1953, foi morar em Paris. Visitou vários países da Europa e, em fins de 1954, retornou ao Brasil, reiniciando suas atividades literárias e jornalísticas.
Em 1963, a convite do governo norte-americano, realizou uma viagem de dois meses (novembro e dezembro) pelos Estados Unidos, pronunciando palestras em universidades e conhecendo escritores e artistas.
Ao seu livro de crônicas A Cidade e os Dias (1957) foi atribuído o Prêmio Carlos de Laet, da Academia Brasileira de Letras.
Como memorialista, publicou Confissões de um Poeta (1979), distinguido com o Prêmio de Memória da Fundação Cultural do Distrito Federal, e O Aluno Relapso (1991).
Seu romance Ninho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o título Snakes’ Nest, e em dinamarquês, sob o título Slangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemas seus, entre as quais La Imaginaria Ventana Abierta, Oda al Crepúsculo, Las Pistas, Las Islas Inacabadas, La Tierra Allende, Mía Patria Húmeda e Réquiem. Em Lima, foi editada uma antologia, Poemas; na Espanha sairam La Moneda Perdida e La Aldea de Sal; nos Estados Unidos, Landsend, antologia poética; na Holanda, a seleção de poemas Vleermuizen em blauw Krabben (Morcegos e goiamuns).
No Chile, saiu a antologia Los Murciélagos. Na Venezuela, foi publicada a antologia El Sol de los Amantes.
Na Itália foram publicados Illuminazioni e Réquiem.
Em 1973, foram conferidos a Finisterra o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa (poesia) do PEN Clube do Brasil, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal e o Prêmio Casimiro de Abreu do Governo do Estado do Rio de Janeiro. O seu romance Ninho de Cobras conquistou o Prêmio Nacional Walmap de 1973. Em 1974, Finisterra recebeu o Prêmio Casimiro de Abreu, do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em 1982, foi distinguido com o Prêmio Mário de Andrade, conferido pela Academia Brasiliense de Letras ao conjunto de suas obras. Ao seu livro de ensaios A Ética da Aventura foi atribuído, em 1983, o Prêmio Nacional de Ensaio do Instituto Nacional do Livro. Em 1986, recebeu o Prêmio Homenagem à Cultura, da Nestlé, pela sua obra poética. Eleito “Intelectual do Ano de 1990”, recebeu o Troféu Juca Pato do seu antecessor nessa láurea, o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Ao seu livro de poemas Curral de Peixe o Clube de Poesia de São Paulo atribuiu o Prêmio Cassiano Ricardo – 1996.
Em 2004 foi-lhe outorgado o Prêmio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro, pelo conjunto da obra.
Seu romance Ninho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o título Snakes’ Nest, e em dinamarquês, sob o título Slangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemas seus, entre as quais La Imaginaria Ventana Abierta, Oda al Crepúsculo, Las Pistas, Las Islas Inacabadas e La Tierra Allende, Mia pátria húmeda, Réquiem, Donde La geografia es uma esperanza, Poesia en general, El mar,los Sueños y los Pájaros. Na Venezuela saiu El sol de los amantes. Em Lima, foi editada uma antologia, Poemas; nos Estados Unidos, Landsend, antologia poética; na Holanda, a antologia bilingue Vleermuizen em blauw Krabben (Morcegos e goiamuns).
Na Itália foram publicadas a antologia Illuminazioni e uma tradução do Réquiem e no Chile a antologia poética Los Murciélagos. Na Espanha, foram publicadas as antologias La Moneda perdida e La Aldeia de sal e os livros de poemas Rumor Nocturno e Plenilúnio.
No plano internacional, Lêdo Ivo é detentor do Prêmio de Poesia del Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2008), do Prêmio de Literatura Brasileira da Casa de las Américas (Cuba, 2009) e do Prêmio Rosalía de Castro, do PEN Clube da Galícia (Espanha, 2010).
Ao longo de sua vida literária, Lêdo Ivo tem sido convidado numerosas vezes para representar o Brasil em congressos culturais e participar de encontros internacionais de poesia.
É sócio efetivo da Academia Alagoana de Letras, sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, sócio efetivo da Academia de Letras do Brasil, sócio honorário da Academia Petropolitana de Letras; sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.
Condecorações: Ordem do Mérito dos Palmares, no grau de Grã-Cruz; Ordem do Mérito Militar, no grau de Oficial; Ordem do Rio Branco, no grau de Comendador; Medalha Manuel Bandeira; Cidadão honorário de Penedo, Alagoas. É Grande Benemérito do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Alagoas. Pertence ao PEN Clube Internacional, sediado em Paris.


Contribuição de MarySSantos.


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O Amor
em 06/10/2014 19:06:30 (3687 leituras)
Eugénio de Andrade

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.



Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"


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Daqui Pra Lá de Lá Pra Cá
em 06/10/2014 15:15:12 (2929 leituras)
Torquato Neto


Era um pacato cidadão
sem documento
não tinha nome profissão
não teve tempo

mas certo dia deu-se um caso
e ele embarcou num disco
e foi levado pra bem longe do asterisco
em que vivemos
ele partiu e não voltou
e não voltou porque não quis
quero dizer
ficou por lá
já que por lá se é mais feliz

e um espaçograma ele enviou
pra quem quisesse compreender
mas ninguém nunca decifrou
o que ele nos mandou dizer
terramarear atenção
o futuro é hoje
e cabe na mão

vietvistavisão
para azar de quem não sabe
e não crê
que se pode sempre a sorte escolher
e enterrar qualquer estrela
no chão

vietvistavisão
terramarear atenção
fica a morte por medida
fica a vida por prisão


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As aparências enganam
em 19/09/2014 16:19:40 (3018 leituras)
Lupicínio Rodrigues


Vejam como as aparências enganam
Como difere a vida dos casais
Não são aqueles que mesmo se amam
Que sempre moram em lugares iguais

Uns se casam porque se querem
Outros somente por comprazer
Sem nem pensar que por mais que fizerem
Nunca haverão de deixar de sofrer

Com seu criado que está presente
Também se passa uma história assim
Ela casou-se com outro vivente
E eu tenho outra mulher para mim

Só uma coisa eu sempre reclamo
E até hoje não me conformei
Que quem casou com a pessoa que eu amo
Beije na boca que eu tanto beijei


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A Nossa Vitória de cada Dia
em 02/09/2014 15:32:17 (4131 leituras)
Clarice Lispector

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'


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Respeite a Você Mais do que aos Outros
em 16/06/2014 15:35:27 (3979 leituras)
Clarice Lispector

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. (...) Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. (...) Pretendia apenas lhe contar o meu novo carácter, ou falta de carácter. (...) Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. (...) Uma amiga, um dia desses, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou essa calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinquenta anos. (...) o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Clarice Lispector, in 'Carta a Tânia [irmã de Clarice] (1947)'






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Soneto - Carregado de mim ando no mundo
em 26/05/2014 18:34:00 (4158 leituras)
Gregório de Matos

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c'os demais, que só, sisudo.


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O Amor ao Próximo
em 20/05/2014 18:27:38 (3228 leituras)
Friedrich Nietzsche

Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e a vossa solicitude exprime-se em belas palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é apenas o vosso mau amor por vós próprios.
É para fugirdes de vós que andais em volta do próximo, e quereríeis converter isso numa virtude; mas pus a claro o vosso «desinteresse».
(...) Não suportais a vossa própria companhia, e não vos amais o suficiente; procurais então seduzir o próximo com o vosso amor e doirar-vos com o seu erro.
Eu quisera que todos os próximos e aqueles que se seguem se vos tornassem intoleráveis: assim teríeis de extrair de vós mesmos o amigo de coração transbordante.
Convocais uma testemunha quando quereis dizer bem de vós; e logo que a haveis induzido a pensar bem da vossa pessoa, vós mesmos pensais bem da vossa pessoa.
É mentiroso não só o que fala contra a sua consciência, mas também o que fala contra a sua inconsciência. Ora é assim que falais de vós no trânsito diário, e que enganais o próximo e a vós mesmos.
Assim fala o louco: 'O convívio dos homens estraga o carácter, sobretudo quando não tem carácter'.
Um procura o próximo porque se procura, o outro porque anseia perder-se. O vosso mau amor por vós próprios converte a vossa solidão num cativeiro.

Friedrich Nietzsche, in 'Assim Falava Zaratustra'


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Pátria
em 02/05/2014 13:33:49 (1936 leituras)
Sophia Andresen


Por um país de pedra e vento duro
por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Eu minha vida daria
E vivo neste tormento

(“Pátria” in “Livro Sexto”, 1962)


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Ah, que Olhos Pôs Amor na Minha Cara
em 28/04/2014 17:16:10 (2615 leituras)
William Shakespeare

Ah, que olhos pôs Amor na minha cara
mas sem correspondência a fiel vista?
Ou se a têm, meu juízo onde é que pára
que em tão falsas censuras inda insista?
Se é belo o que meus olhos falso adoram
que quer dizer o mundo em negação?
E se não é, amor mostra se goram
seus olhos, menos fiéis que os homens: não,
como pode? Como pode, se pranto
e espera o afectam, ser fiel no olhar?
De erros da minha vista não me espanto,
o sol não vê até o céu limpar.
Manhoso amor, com choros pões-me cego,
mas vendo bem, a tuas faltas chego.

William Shakespeare, in "Sonetos (148)"


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Os Fortes Aspiram a Separar-se e os Fracos a Unir-se
em 16/04/2014 18:19:10 (2349 leituras)
Friedrich Nietzsche

O crescimento da comunidade frutifica no indivíduo um interesse novo que o aparta da sua pena pessoal, da sua aversão à sua própria pessoa. Todos os doentes aspiram instintivamente a organizar-se em rebanhos, o sacerdote ascético adivinha este instinto e alenta-os onde quer que haja rebanhos, o instinto de fraqueza forma-os, a habilidade do sacerdote organiza-os. Não nos enganemos: os fortes aspiram a separar-se e os fracos a unir-se; se os primeiros se reúnem, é para uma acção agressiva comum, que repugna muito à consciência de cada qual; pelo contrário, os últimos unem-se pelo prazer que acham em unir-se; porque isto satisfaz o seu instinto, assim como irrita o instinto dos fortes. Toda a oligarquia envolve o desejo da tirania; treme continuamente por causa do esforço que cada um dos indivíduos tem que fazer para dominar este desejo.

Friedrich Nietzsche, in 'Genealogia da Moral'


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Declaração de Amor
em 12/04/2014 17:09:57 (3030 leituras)
Friedrich Nietzsche

(e o poeta cai na armadilha)

Ó maravilha! Voará ainda?
Sobe e as suas asas não se mexem?
Quem é então que o leva e faz subir?
Que fim tem ele, caminho ou rédea, agora?

Como a estrela e a eternidade
Vive nas alturas de que se afasta a vida,
Compassivo, mesmo para com a inveja...
E quem o vê subir sobe também alto.

Ó albatroz! Ó minha ave!
Um desejo eterno me empurra para os cimos
Pensei em ti e chorei.
Chorei mais e mais... Sim, eu amo-te!


Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"


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A Fragilidade dos Valores
em 11/04/2014 15:05:53 (2215 leituras)
Friedrich Nietzsche

Todas as coisas «boas» foram noutro tempo más; todo o pecado original veio a ser virtude original. O casamento, por exemplo, era tido como um atentado contra a sociedade e pagava-se uma multa, por ter tido a imprudência de se apropriar de uma mulher (ainda hoje no Cambodja o sacerdote, guarda dos velhos costumes, conserva o jus primae noctis). Os sentimentos doces, benévolos, conciliadores, compassivos, mais tarde vieram a ser os «valores por excelência»; por muito tempo se atraiu o desprezo e se envergonhava cada qual da brandura, como agora da dureza.
A submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança para se submeterem ao direito! O «direito» foi por muito tempo um vetitum, uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbio.

Cada passo que o homem deu sobre a Terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais; tudo passou adiante e atrasou todo o movimento, em troca teve inumeráveis mártires; por estranho que isto hoje nos pareça, já o demonstrei na Aurora, aforismo 18: «Nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece». Esta mesma vaidade nos impede de considerar os períodos imensos da «moralização dos costumes» que precederam a história capital e foram a verdadeira história, a história capital e decisiva que fixou o carácter da humanidade. Então a dor passava por virtude, a vingança por virtude, a renúncia da razão por virtude, e o bem-estar passivo por perigo, o desejo de saber por perigo, a paz por perigo, a misericórdia por opróbio, o trabalho por vergonha, a demência por coisa divina, a conversão por imoralidade e a corrupção por coisa excelente.

Friedrich Nietzsche, in 'A Genealogia da Moral'


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A Diferença Que Há
em 11/04/2014 14:42:54 (4025 leituras)
Jorge de Sena

A diferença que há entre os estudiosos e os poetas
É que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto
A ver se conseguem decifrá-lo, e estes
Abrem o livro, lêem três páginas, farejam as restantes
(nem sequer todas) e sabem logo do assunto
o que os outros não conseguiram saber. Por isso é que
os estudiosos têm raiva dos poetas,
capazes de ler tudo sem Ter lido nada
( e eles não leram nada tendo lido tudo).
O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,

E desacreditam a gaya Scienza


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Vida e Obra
em 09/04/2014 17:47:54 (1927 leituras)
Friedrich Nietzsche

Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, 15 de Outubro de 1844 — Weimar, 25 de Agosto de 1900) foi um filólogo, filósofo, crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX.

Ele escreveu vários textos críticos sobre a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.

As ideias-chaves de Nietzsche incluíam a dicotomia apolíneo/dionisíaca, o perspectivismo, a vontade de poder, a "morte de Deus", o Übermensch (Além-Homem) e eterno retorno. Sua filosofia central é a ideia de "afirmação da vida", que envolve questionamento de qualquer doutrina que drene uma expansiva de energias, porém socialmente predominantes essas ideias poderiam ser. Seu questionamento radical do valor e da objetividade da verdade tem sido o foco de extenso comentário e sua influência continua a ser substancial, especialmente na tradição filosófica continental compreendendo existencialismo, pós-modernismo e pós-estruturalismo.

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu numa família luterana, em 15 de outubro de 1844. Filho de Karl Ludwig, seus dois avós eram pastores protestantes. O próprio Nietzsche pensou em seguir a carreira de pastor: entretanto, rejeitou a crença religiosa durante sua adolescência e o seu contato com a filosofia afastou-o da carreira teológica.

Iniciou seus estudos no semestre de Inverno de 1864-1865 na Universidade de Bonn em filologia clássica e teologia evangélica. Em Bonn, participou da Burschenschaft Frankonia, que acabou abandonando em razão de sua participação nesta organização atrapalhar seus estudos. Transferiu-se, depois, para a Universidade de Leipzig: isso se deveu, acima de tudo, à transferência do professor Friedrich Wilhelm Ritschl (figura paterna para Nietzsche) para essa Universidade. Durante os seus estudos na universidade de Leipzig, a leitura de Schopenhauer ("O Mundo como Vontade e Representação", 1820) veio a constituir as premissas da sua vocação filosófica. Aluno brilhante, dotado de sólida formação clássica, Nietzsche foi nomeado, aos 24 anos, professor de filologia na universidade de Basileia. Adotou, então, a nacionalidade suíça. Desenvolveu, durante dez anos, a sua acuidade filosófica no contacto com o pensamento grego antigo, com predileção para os Pré-socráticos, em especial para Heráclito e Empédocles. Durante os seus anos de ensino, tornou-se amigo de Jacob Burckhardt e Richard Wagner. Em 1870, comprometeu-se como voluntário na Guerra franco-prussiana. A experiência da violência e o sofrimento chocaram-no profundamente.

Em 1879, seu estado de saúde obrigou-o a deixar o posto de professor. Sua voz, inaudível, afastava os alunos. Começou, então, uma vida errante em busca de um clima favorável tanto para sua saúde como para seu pensamento (Veneza, Gênova, Turim, Nice, Sils-Maria: "Não somos como aqueles que chegam a formar pensamentos senão no meio dos livros - o nosso hábito é pensar ao ar livre, andando, saltando, escalando, dançando (... )."

Em 1882, encontrou Paul Rée e Lou Andreas-Salomé, a quem pediu em casamento. Ela recusou, após ter-lhe feito esperar sentimentos recíprocos. No mesmo ano, começou a escrever o 'Assim Falou Zaratustra', quando de uma estada em Nice.
Nietzsche não cessou de escrever com um ritmo crescente. Este período terminou brutalmente em 3 de Janeiro de 1889 com uma "crise de loucura" que, durando até a sua morte, colocou-o sob a tutela da sua mãe e sua irmã. No início desta loucura, Nietzsche encarnou alternativamente as figuras de Dionísio e Cristo, expressas em bizarras cartas, afundando, depois, em um silêncio quase completo até a sua morte. Uma lenda dizia que contraiu sífilis. Estudos recentes se inclinam antes para um cancro no cérebro que, eventualmente, pode ter tido origem sifilítica. Após sua morte, sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche e Peter Gast, dileto amigo do filósofo, segundo um plano de Nietzsche, datado de 17 de março de 1887, efetuaram uma coletânea de fragmentos póstumos para compor a obra conhecida como "Vontade de Poder". Essa obra foi, amiúde, acusada de ser uma "deturpação nazista"; tal afirmação mostrou-se inverídica, frente às comparações com a edição crítica alemã, como denotaram os tradutores da nova tradução para o português, e especialmente o filósofo Gilvan Fogel, que afirmou que "é preciso que se enfatize: os textos são autênticos. Todos são da cunhagem, da lavra de Nietzsche. Não foram, como já se disse e se insinuou, distorcidos ou adulterados pelos organizadores".

Colapso mental e morte (1889–1900)

Em 3 de janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso mental. Nietzsche teria testemunhado o açoitamento de um cavalo no outro extremo da Piazza Carlo Alberto, e então correu em direção ao cavalo, jogou os braços ao redor de seu pescoço para protegê-lo e em seguida, caiu no chão.

Nos dias seguintes, Nietzsche enviou escritos breves conhecidos como Wahnbriefe ("Cartas da loucura")— para um número de amigos como Cosima Wagner e Jacob Burckhardt. Muitas delas assinadas "Dionísio".

Embora a maioria dos comentaristas considerem seu colapso como alheios à sua filosofia, Georges Bataille chegou a insinuar que sua filosofia pudesse tê-lo enlouquecido ("'Homem encarnado' também deve enlouquecer") e a psicanálise postmortem de René Girard postula uma rivalidade de adoração com o Richard Wagner.

Durante toda a vida, tentou explicar o insucesso de sua literatura, chegando à conclusão de que nascera póstumo, para os leitores do porvir. O sucesso de Nietzsche, entretanto, sobreveio quando um professor dinamarquês leu a sua obra 'Assim Falou Zaratustra' e, então, tratou de difundi-la, em 1888.

Muitos estudiosos da época tentaram localizar os momentos que Nietzsche escrevia sob crises nervosas ou sob efeito de drogas (Nietzsche estudou biologia e tentava descobrir sua própria maneira de minimizar os efeitos da sua doença).

Obra

A cultura ocidental e suas religiões, assim como a moral judaico-cristã, foram temas comuns em suas obras. Nietzsche se apresenta como alvo de muitas críticas na história da filosofia moderna, isto porque, primariamente, há certas dificuldades de entendimento na forma de apresentação das figuras e/ou categorias ao leitor ou estudioso, causando confusões devido principalmente aos paradoxos dos conceitos de realidade ou verdade.

Nietzsche, sem dúvida, considera o cristianismo e o budismo como "as duas religiões da decadência", embora ele afirme haver uma grande diferença nessas duas concepções. O budismo, para Nietzsche, "é cem vezes mais realista que o cristianismo". Religiões que aspiram ao nada, cujos valores dissolveram a mesquinhez histórica. Não obstante, também se autointitula ateu:

"Para mim o ateísmo não é nem uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto" (Ecce Homo, pt.II, af.1)

A crítica que Nietzsche faz do idealismo metafísico focaliza as categorias do idealismo e os valores morais que o condicionam, propondo uma outra abordagem: a genealogia dos valores.

Friedrich Nietzsche pretendeu ser o grande "desmascarador" de todos os preconceitos e ilusões do gênero humano, aquele que ousa olhar, sem temor, aquilo que se esconde por trás de valores universalmente aceitos, por trás das grandes e pequenas verdades melhor assentadas, por trás dos ideais que serviram de base para a civilização e nortearam o rumo dos acontecimentos históricos. E, assim, a moral tradicional (e, principalmente, a esboçada por Kant), a religião e a política não são, para ele, nada mais que máscaras que escondem uma realidade inquietante e ameaçadora, cuja visão é difícil de suportar. A moral, seja ela kantiana ou hegeliana, e até a catharsis aristotélica, são caminhos mais fáceis de serem trilhados para se subtrair à plena visão autêntica da vida.

Nietzsche criticou essa moral que leva à revolta dos indivíduos inferiores, das classes subalternas e escravas contra a classe superior e aristocrática que, por um lado, pela adoção dessa mesma moral, sofre de má consciência e cria a ilusão de que mandar é por si mesmo é adotar essa moral.

A vida só se pode conservar e manter-se através de imbricações incessantes entre os seres vivos, através da luta entre vencidos que gostariam de sair vencedores e vencedores que podem a cada instante ser vencidos e, por vezes, já se consideram como tais. Neste sentido, a vida é vontade de poder ou de domínio ou de potência. Vontade essa que não conhece pausas e, por isso, está sempre criando novas máscaras para se esconder do apelo constante e sempre renovado da vida; pois, para Nietzsche, a vida é tudo e tudo se esvai diante da vida humana. Porém as máscaras, segundo ele, tornam a vida mais suportável, ao mesmo tempo em que a deformam, mortificando-a à base de cicuta e, finalmente, ameaçando destruí-la.

Não existe vida média, segundo Nietzsche, entre aceitação da vida e renúncia. Para salvá-la, é mister arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como é: não para sofrê-la ou aceitá-la com resignação, mas para restituir-lhe o seu ritmo exaltante, o seu merismático júbilo.

O homem é um filho do "húmus" e é, portanto, corpo e vontade não somente de sobreviver, mas de vencer. Suas verdadeiras "virtudes" são: o orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a inimizade, a veneração, os bons hábitos, a vontade inabalável, a disciplina da intelectualidade superior, a vontade de poder. Mas essas virtudes são privilégios de poucos, e é para esses poucos que a vida é feita. De fato, Nietzsche é contrário a qualquer tipo de igualitarismo e, principalmente, ao disfarçado legalismo kantiano, que atenta para o bom senso através de uma lei inflexível, ou seja, o imperativo categórico: "Proceda em todas as suas ações de modo que a norma de seu proceder possa tornar-se uma lei universal".

Essas críticas se deveram à hostilidade de Nietzsche em face do racionalismo, que logo refutou como pura irracionalidade. Para ele, Kant nada mais é do que um fanático da moral, uma tarântula catastrófica.

Para Nietzsche, o homem é individualidade irredutível, à qual os limites e imposições de uma razão que tolhe a vida permanecem estranhos a ela mesma, à semelhança de máscaras de que pode e deve libertar-se. Em Nietzsche, diferentemente de Kant, o mundo não tem ordem, estrutura, forma e inteligência. Nele, as coisas "dançam nos pés do acaso" e somente a arte pode transfigurar a desordem do mundo em beleza e fazer aceitável tudo aquilo que há de problemático e terrível na vida.

Mesmo assim, apesar de todas as diferenças e oposições, deve-se reconhecer uma matriz comum entre Kant e Nietzsche, como que um substrato tácito mas atuante. Essa matriz comum é a alma do romantismo do século XIX com sua ânsia de infinito, com sua revolta contra os limites e condicionamentos do homem. À semelhança de Platão, Nietzsche queria que o governo da humanidade fosse confiado aos filósofos, mas não a filósofos como Platão ou Kant, que ele considerava simples "operários da filosofia".

Na obra nietzschiana, a proclamação de uma nova moral contrapõe-se radicalmente ao anúncio utópico de uma nova humanidade, livre pelo imperativo categórico, como esperançosamente acreditava Kant. Para Nietzsche, a liberdade não é mais que a aceitação consciente de um destino necessitante. O homem libertado de qualquer vínculo, senhor de si mesmo e dos outros, o homem desprezador de qualquer verdade estabelecida ou por estabelecer e estar apto para se exprimir a vida, em todos os seus atos - era este não apenas o ideal apontado por Nietzsche para o futuro, mas a realidade que ele mesmo tentava personificar.

Aqui, necessário se faz perceber que, ao que superficialmente se parece, Nietzsche cria e cai em seu próprio "Imperativo Categórico": por certo, imperativo este baseado na completa liberdade do ser e ausência de normas. Porém, a liberdade de Nietzsche está entre a aceitação consciente (livre escolha) de um objetivo moral superior (que transcende a racionalidade do ser humano) e a matéria, a razão material kantiana. Portanto, a realidade está na escolha consciente entre a moral superior (instinto, vontade do coração) e a moral racional (somatório de valores criados pelo homem). O que reside não nas palavras mas nos sentimentos (amor, música etc.).

Para Kant, a razão que se movimenta no seu âmbito, nos seus limites, faz o homem compreender-se a si mesmo e o dispõe para a libertação. Mas, segundo Nietzsche, trata-se de uma libertação escravizada pela razão, que só faz apertar-lhe os grilhões, enclaustrando a vida humana digna e livre.

Em Nietzsche, encontra-se uma filosofia antiteorética à procura de um novo filosofar de caráter libertário, superando as formas limitadoras da tradição que só galgou uma "liberdade humana" baseada no ressentimento e na culpa. Portanto, toda a teleologia de Kant de nada serve a Nietzsche: a ideia do sujeito racional, condicionado e limitado é rejeitada violentamente em favor de uma visão filosófica muito mais complexa do homem e da moral.

Nietzsche acreditava que a base racional da moral era uma ilusão e por isso, descartou a noção de homem racional, impregnada pela utópica promessa - mais uma máscara que a razão não autêntica impôs à vida humana. O mundo, para Nietzsche, não é ordem e racionalidade, mas desordem e irracionalidade. Seu princípio filosófico não era, portanto, Deus e razão, mas a vida que atua sem objetivo definido, ao acaso, e, por isso, se está dissolvendo e transformando-se em um constante devir. A única e verdadeira realidade sem máscaras, para Nietzsche, é a vida humana tomada e corroborada pela vivência do instante.

Nietzsche era um crítico das "ideias modernas", da vida e da cultura moderna, do neonacionalismo alemão. Para ele, os ideais modernos como democracia, socialismo, igualitarismo, emancipação feminina não eram senão expressões da decadência do "tipo homem". Por estas razões, é, por vezes, apontado como um precursor da pós-modernidade.

A figura de Nietzsche foi particularmente promovida na Alemanha Nazi, tendo sua irmã, simpatizante do regime hitleriano, fomentado esta associação. Como dizia Heidegger, ele próprio nietzschiano, "na Alemanha se era contra ou a favor de Nietzsche".

Todavia, Nietzsche era explicitamente contra o movimento antissemita, posteriormente promovido por Adolf Hitler e seus partidários. A este respeito, pode-se ler a posição do filósofo:

Antes direi no ouvido dos psicólogos, supondo que desejem algum dia estudar de perto o ressentimento: hoje esta planta floresce do modo mais esplêndido entre os anarquistas e antissemitas, aliás onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro cheiro.

...tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismo, os antissemitas, que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e, através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afetação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo...

Sem dúvida, a obra de Nietzsche sobreviveu muito além da apropriação feita pelo regime nazista. Ainda hoje, é um dos filósofos mais estudados e fecundos. Por vários momentos, inclusive, Nietzsche tentou juntar seus amigos e pensadores para que um fosse professor do outro, numa espécie de confraria. Contudo, esta ideia fracassou, e Nietzsche continuou sozinho seus estudos e desenvolvimento de ideias, ajudado apenas por poucos amigos que liam em voz alta seus textos, que, nos momentos de crise profunda, ele não conseguia ler.

Ideias

Seu estilo é aforismático, escrito em trechos concisos, muitas vezes de uma só página, e dos quais são pinçadas máximas. Muitas de suas frases se tornaram famosas, sendo repetidas nos mais diversos contextos, gerando muitas distorções e confusões. Algumas delas:

"A filosofia é o exílio voluntário entre montanhas geladas."
"Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmo somos desconhecidos."
"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."
"O amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são."
"Como são múltiplas as ocasiões para o mal-entendido e para a ruptura hostil!"
"Deus está morto. Viva Perigosamente. Qual o melhor remédio? - Vitória!".
"Há homens que já nascem póstumos."
"O Evangelho morreu na cruz."
"A diferença fundamental entre as duas religiões da decadência: o budismo não promete, mas assegura. O cristianismo promete tudo, mas não cumpre nada."
"Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida mas no "além" - no nada -, tira-se da vida o seu centro de gravidade."
"Para ler o Novo Testamento é conveniente calçar luvas. Diante de tanta sujeira, tal atitude é necessária."
"O cristianismo foi, até o momento, a maior desgraça da humanidade, por ter desprezado o Corpo."
"A fé é querer ignorar tudo aquilo que é verdade."
"As convicções são cárceres."
"As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras."
"Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem."
"Aquilo que não me destrói me fortalece."
"Sem música, a vida seria um erro."
"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música."
"A moralidade é o instinto do rebanho no indivíduo."
"O idealista é incorrigível: se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno."
"Em qualquer lugar onde encontro uma criatura viva, encontro desejo de poder."
"Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos."
"Quanto mais me elevo, menor eu pareço aos olhos de quem não sabe voar."
"Se minhas loucuras tivessem explicações, não seriam loucuras."
"O Homem evolui dos macacos? É, existem macacos!"
"Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal."
"Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura."
"Torna-te quem tu és!"
"Cada pessoa tem que escolher quanta verdade consegue suportar"
"O desespero é o preço pago pela autoconsciência"
"O depois de amanhã me pertence"
"O padre está mentindo."
"Deus está morto mas o seu cadáver permanece insepulto."
"Acautela-te quando lutares com monstros, para que não te tornes um."
"Da escola de guerra da vida: o que não me mata, torna-me mais forte."
"Será o Homem um erro de Deus, ou Deus um erro dos Homens?"
"É preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança."

Longe de ser um escritor de simples aforismas, ele é considerado pelos seus seguidores um grande estilista da língua alemã, como o provaria Assim Falou Zaratustra, livro que ainda hoje é de dificílima compreensão estilística e conceitual. Muito pode ser compreendido na obra de Nietzsche como exercício de pesquisa filológica, no qual se unem palavras que não poderiam estar próximas ("Nascer póstumo"; "Deus Morreu", "delicadamente mal-educado", etc… ).

Adorava a França e a Itália, porque acreditava que eram terras de homens com espíritos-livres. Admirava Voltaire, e considerava como último grande alemão Goethe, humanista como Voltaire. Naqueles países passou boa parte de sua vida e ali produziu seus mais memoráveis livros. Detestava a prepotência e o anti-semitismo prussianos, chegando a romper com a irmã e com Richard Wagner, por ver neles a personificação do que combatia - o rigor germânico, o anti-semitismo, o imperativo categórico, o espírito aprisionado, antípoda de seu espírito-livre. Anteviu o seu país em caminhos perigosos, o que de fato se confirmou catorze anos após sua morte, com a primeira grande guerra e a gestação do Nazismo.

Referências nietzschianas

Contudo, no próprio legado do filósofo podemos inferir suas opiniões em relação a outras filosofias e posições. É sumamente importante notar que Nietzsche perdeu o pai muito cedo, seus primeiros livros publicados até 1878, que não expunham suas ideias mais ácidas, ainda assim fizeram pouco ou nenhum sucesso. Que ele ficou extremamente desapontado com o sucesso de Richard Wagner, o qual se aproximou do cristianismo. Teve uma vida errante, com poucos amigos, e sempre perseguido por surtos de doença.

Nas suas obras vemos críticas bastante negativas a Kant, Wagner, Sócrates, Platão, Aristóteles, Xenofonte, Martinho Lutero, à metafísica, ao utilitarismo, anti-semitismo, socialismo, anarquismo, fatalismo, teologia, cristianismo, à concepção de Deus, ao pessimismo, estoicismo, ao iluminismo e à democracia.

Dentre os poucos elogios deferidos por Nietzsche, coletamos citações, muitas vezes com ressalvas a Schopenhauer, Spinoza, Dostoiévski, Shakespeare, Dante, Napoleão, Goethe, Darwin, Leibniz, Pascal, Edgar Allan Poe, Lord Byron, Musset, Leopardi, Kleist, Gogol, Voltaire e ao próprio Wagner, grande amigo e confidente de Nietzsche até certo momento.

Ele era, sem dúvida, muito apreciador da Natureza, dos pré-socráticos e das culturas helénicas.

Niilismo

O legado da obra de Nietzsche foi e continua sendo ainda hoje de difícil e contraditória compreensão. Assim, há os que, ainda hoje, associam suas ideias ao niilismo, defendendo que para Nietzsche:

"A moral não tem importância e os valores morais não têm qualquer validade, só são úteis ou inúteis consoante a situação"; "A verdade não tem importância; verdades indubitáveis, objectivas e eternas não são reconhecíveis. A verdade é sempre subjectiva"; "Deus está morto: não existe qualquer instância superior, eterna. O Homem depende apenas de si mesmo"; "O eterno retorno do mesmo: A história não é finalista, não há progresso nem objectivo". Ou ainda "...se existem deuses, como poderia eu suportar não ser um deus!? Por conseguinte não há deus." passagem que deixa evidente que a conclusão não decorre da premissa, mas sim da pessoal inaceitação do autor a um ente superior ao que ele próprio poderia conceber, ou seja: que, no mínimo, o autor é o ser de maior capacidade intelectiva que existe - isto portanto não o caracteriza como niilista. A superação do homem do seu tempo é o eixo de sua filosofia.

Outros, entretanto, não pensam que Nietzsche seja um autor do niilismo, mas ao contrário um crítico do niilismo. Na genealogia da moral o filósofo faz critícas abertas ao niilismo, que para ele seria uma "anseio do vazio", uma manifestação dos seres doentes aonde se conformam e idealizam o vazio e não um verdadeiro estado de força. Além disso, para ele o homem pode ser, além de um destruidor, um criador de valores. E os valores a serem destruídos, como os cristãos (na sua obra, faz menção à doença, à ignorância), um dia seriam substituídos pela saúde, a inteligência, entre outros. Tal afirmação se baseia na obra Assim falou Zaratustra, onde se faz clara a vinda do Além-homem, sendo criar a finalidade do ser. Tal correspondência é totalmente contrária ao niilismo, pelo menos em princípio. Ou um "niilismo positivo", para Heidegger.Todavia, Nietzsche, contrário ou não, não deixando escapar de suas críticas nem mesmo seu mestre Schopenhauer nem seu grande amigo Wagner, procurou denunciar todas as formas de renúncia da existência e da vontade. É esta a concepção fundamental de sua obra Zaratustra, "a eterna, suprema afirmação e confirmação da vida". O eterno retorno significa o trágico-dionisíaco dizer sim à vida, em sua plenitude e globalidade. É a afirmação incondicional da existência.

Talvez a falta de consenso na apreciação da obra de Nietzsche tenha em parte a ver com os paradoxos no pensamento do próprio autor. As suas últimas obras, sobretudo o seu autobiográfico Ecce Homo (1888), foram escritas em meio à sua crise que se aprofundava. Em Janeiro de 1889, Nietzsche sofreu em Turim um colapso nervoso. Nietzsche passou os últimos 11 anos da sua vida sob observação psiquiátrica, inicialmente num manicômio em Jena, depois em casa de sua mãe em Naumburg e finalmente na casa chamada Villa Silberblick em Weimar, onde, após a morte de sua mãe, foi cuidado por sua irmã.

Faleceu em 25 de agosto de 1900. Encontra-se sepultado em Röcken Churchyard, Röcken, Saxônia-Anhalt na Alemanha.

Escritos

Obras de Friedrich Nietzsche, na ordem em que foram compostas:

O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik, 1872); reeditado em 1886 com o título O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo (Die Geburt der Tragödie, Oder: Griechentum und Pessimismus) e com um prefácio autocrítico. — Contra a concepção dos séculos XVIII e XIX, que tomavam a cultura grega como epítome da simplicidade, da calma e da serena racionalidade, Nietzsche, então influenciado pelo romantismo, interpreta a cultura clássica grega como um embate de impulsos contrários: o dionisíaco, ligado à exacerbação dos sentidos, à embriaguez extática e mística e à supremacia amoral dos instintos, cuja figura é Dionísio, deus do vinho, da dança e da música, e o apolíneo, face ligada à perfeição, à medida das formas e das ações, à palavra e ao pensamento humanos (logos), representada pelo deus Apolo. Segundo Nietzsche, a vitalidade da cultura e do homem grego, atestadas pelo surgimento da tragédia, deveu-se ao desenvolvimento de ambas as forças, e o adoecimento da mesma sobreveio ao advento do homem racional, cuja marca é a figura de Sócrates, que pôs fim à afirmação do homem trágico e desencaminhou a cultura ocidental, que acabou vítima do cristianismo durante séculos.
A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen - provavelmente os textos que o compõem remontam a 1873 - publicado postumamente). Trata-se de um livro deixado incompleto, mas que se sabe ter sido intenção de Nietzsche publicar. Trata-se, no fundo, de um escrito ainda filológico mas já de matriz filosófica disfarçada por uma pretensa intenção histórica; mas o grande diferencial desta obra, sua inovação, consiste em sua interpretação psicológica dos pensadores originários. Considera os casos gregos de Tales, Anaximandro, Heráclito, Parménides e Anaxágoras sob uma perspectiva inovadora e interpretativa, relevadora da filosofia que é de Nietzsche.
Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral18 (Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinn, 1873 - publicado postumamente; edição brasileira, 2008). — Ensaio no qual afirma que aquilo que consideramos verdade é mera "armadura de metáforas, metonímias e antropomorfismos". Apesar de póstumo é considerado por estudiosos como elemento-chave de seu pensamento.
Considerações Extemporâneas ou Considerações Intempestivas (Unzeitgemässe Betrachtungen, 1873 a 1876). — Série de quatro artigos (dos treze planejados) que criticam a cultura européia e alemã da época de um ponto de vista antimoderno, e anti-histórico, de crítica à modernidade.
David Strauss, o Confessor e o Escritor (David Strauss, der Bekenner und der Schriftsteller, 1873) no qual, ao atacar a ideia proposta por David Friedrich Strauss de uma "nova fé" baseada no desvendamento científico do mundo, afirma que o princípio da vida é mais importante que o do conhecimento, que a busca de conhecimento (posteriormente discutida no conceito de "vontade de verdade") deve servir aos interesses da vida;
Dos Usos e Desvantagens da História Para a Vida (Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, 1874);
Schopenhauer como Educador (Schopenhauer als Erzieher, 1874);
Richard Wagner em Bayreuth (Richard Wagner in Bayreuth, 1876).

Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres (Menschliches, Allzumenschliches, Ein Buch für freie Geister, versão final publicada em 1886); primeira parte originalmente publicada em 1878, complementada com Opiniões e Máximas (Vermischte Meinungen und Sprüche, 1879) e com O Andarilho e sua Sombra ou O Viajante e sua Sombra (Der Wanderer und sein Schatten, 1880). — Primeiro de estilo aforismático do autor.
Aurora, Reflexões sobre Preconceitos Morais (Morgenröte. Gedanken über die moralischen Vorurteile, 1881). — A compreensão hedonística das razões da ação humana e da moral são aqui substituídas, pela primeira vez, pela ideia de poder, sensação de poder, início das reflexões sobre a vontade de poder, que só seriam explicitadas em Assim Falou Zaratustra.
A Gaia Ciência, traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata (Die fröhliche Wissenschaft, 1882). — No terceiro capítulo deste livro é lançada o famoso diagnóstico nietzschiano: "Deus está morto. Deus continua morto. E fomos nós que o matamos", proferido pelo Homem Louco em meio aos mercadores ímpios (§125). No penúltimo parágrafo surge a ideia de eterno retorno. E no último, aparece Zaratustra, o criador da moral corporificada do Bem e do Mal que, como personagem na obra posterior, finalmente superará sua própria criação e anunciará o advento de um novo homem, um além-do-homem.
Assim Falou Zaratustra, um Livro para Todos e para Ninguém (Also Sprach Zarathustra, Ein Buch für Alle und Keinen, 1883-85).
Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886). Neste livro denso são expostos os conceitos de vontade de poder, a natureza da realidade considerada de dentro dela mesma, sem apelar a ilusórias instâncias transcendentes, perspectivismo e outras noções importantes do pensador. Critica demolidoramente as filosofias metafísicas em todas as suas formas, e fala da criação de valores como prerrogativa nobre que deve ser posta em prática por uma nova espécie de filósofos.
Genealogia da Moral, uma Polêmica (Zur Genealogie der Moral, Eine Streitschrift, 1887). Complementar ao anterior — como que sua parte prática, aplicada — este livro desvenda o surgimento e o real significado de nossos corriqueiros juízos de valor.
O Crepúsculo dos Ídolos, ou como Filosofar com o Martelo (Götzen-Dämmerung, oder Wie man mit dem Hammer philosophiert, agosto-setembro 1888). Obra onde dilacera as crenças, os ídolos (ideais ou autores do cânone filosófico), e analisa toda a gênese da culpa no ser humano.
O Caso Wagner, um Problema para Músicos (Der Fall Wagner, Ein Musikanten-Problem, maio-agosto 1888).
O Anticristo - Praga contra o Cristianismo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum, setembro 1888) - Apesar de apontar Cristo, mesmo em sua concepção "própria", como sintoma de uma decadência análoga à que possibilitou o surgimento do Budismo, nesta obra Nietzsche dirige suas críticas mais agudas a Paulo de Tarso, o codificador do cristianismo e fundador da Igreja. Acusa-o de deturpar o ensinamento de seu mestre — pregador da salvação no agora deste mundo, realizada nele mesmo e não em promessas de um Além — forjando o mundo de Deus como a cima e além deste mundo. "O único cristão morreu na cruz", como diz no livro que seria o início de uma obra maior a que deu sucessivamente os títulos de Vontade de Poder e Transmutação de Todos os Valores: uma grande composição sinótica da qual restam apenas meras peças (O Anticristo, O Crepúsculo dos Ídolos e o Nietzsche contra Wagner) não menos brilhantes que a restante obra.
Ecce Homo, de como a gente se torna o que a gente é (Ecce Homo, Wie man wird, was man ist, outubro-novembro 1888) — Uma autobi(bli)ografia, onde Nietzsche, ciente de sua importância e acometido por delírios de grandeza, acha necessário, antes de expor ao mundo a sua obra definitiva (jamais concluída), dizer quem ele é, por que escreve o que escreve e por que "é um destino". Comenta as suas obras então publicadas. Oferece uma consideração sobre o significado de Zaratustra. E por fim, dizendo saber o que o espera, anuncia o apocalipse: "Conheço minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo — de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. (… ) Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão que público este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo. (… ) Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremoto, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra de espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares — todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra."19
Nietzsche contra Wagner (Nietzsche contra Wagner, Aktenstücke eines Psychologen, dezembro 1888).

Manuscritos publicados postumamente

Escreveu ainda uma recolha de poemas, publicados postumamente, com o nome de Ditirambos de Dioniso.

Nietzsche deixou muitos cadernos manuscritos, além de correspondências. O volume desses textos é maior do que o dos publicados. Os de 1870 desenvolvem muitos temas de seus livros publicados, em especial uma teoria do conhecimento. Os de 1880 que, após seu colapso nervoso, foram selecionados pela sua irmã, que os publicou com o título "A vontade de poder", desenvolvem considerações mais ontológicas a respeito das doutrinas de vontade de poder e de eterno retorno e sua capacidade de interpretar a realidade. Entre essas especulações e sob os esforços de intérpretes de sua obra, os manuscritos de 1880 estabelecem repetidamente que "não há fatos, somente interpretações".

Contudo, está disponível a obra Fragmentos Finais, que é baseada na reestruturação feita aos seus manuscritos no Arquivo.

No Brasil, alguns trechos desses fragmentos póstumos podem ser encontrados no livro Nietzsche da coleção Os Pensadores, publicada pela editora Abril Cultural.

Composições Musicais

As composições de Friedrich Nietzsche não são tão conhecidas como seus escritos filosóficos ou seus poemas, mas o próprio Nietzsche, como um artista, pensou a música como seu principal meio de expressão.

Antes de se estabelecer plenamente como um filósofo, ele já havia criado uma miscelânea significativa de produções como poeta e compositor. A poesia permaneceu essencial para seus escritos filosóficos, e a composição musical tornou-se menos importante para ele na medida em que seu envolvimento com a palavra escrita foi adquirindo "nome próprio". Como conseqüência, as suas obras musicais são geralmente consideradas de pouca importância para a compreensão do seu pensamento filosófico.


Fonte: wikipédia e sites da internet.


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Poema Melancólico a não sei que Mulher
em 05/03/2014 18:18:29 (3685 leituras)
Miguel Torga

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga, in 'Diário VII'


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O Egoísmo Pessoal Tapa Todos os Horizontes
em 18/02/2014 21:25:51 (2599 leituras)
José Saramago


O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica. Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada... alguma coisa não funciona. Talvez um dia!

José Saramago, in 'La Verdade (1994)'


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À morte de F.
em 05/02/2014 13:42:05 (5750 leituras)
Francisco de Vasconcelos Coutinho

Esse jasmim, que arminhos desacata,
Essa aurora, que nácares aviva,
Essa fonte, que aljôfares deriva,
Essa rosa, que púrpuras desata;

Troca em cinza voraz lustrosa prata,
Brota em pranto cruel púrpura viva,
Profana em turvo pez prata nativa,
Muda em luto infeliz tersa escarlata.

Jasmim na alvura foi, na luz Aurora,
Fonte na graça, rosa no atributo,
Essa heróica deidade que em luz repousa.

Porém fora melhor que assim não fora,
Pois a ser cinza, pranto, barro e luto,
Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.


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Tirana
em 30/01/2014 15:52:38 (3587 leituras)
Castro Alves


"MINHA MARIA é bonita,
Tão bonita assim não há;
O beija-flor quando passa
Julga ver o manacá.

"Minha Maria é morena,
Como as tardes de verão;
Tem as tranças da palmeira
Quando sopra a viração.

"Companheiros! o meu peito
Era um ninho sem senhor;
Hoje tem um passarinho
P'ra cantar o seu amor.

"Trovadores da floresta!
Não digam a ninguém, não!...
Que Maria é a baunilha
Que me prende o coração.

"Quando eu morrer só me enterrem
Junto às palmeiras do val,
Para eu pensar que é Maria
Que geme no taquaral . . ."


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O Sonho
em 13/01/2014 12:16:49 (2496 leituras)
Olavo Bilac

Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...


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Sejamos Alegres
em 26/11/2013 21:36:12 (3594 leituras)
Clarice Lispector

Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer — e respondo a toda essa infâmia com — exatamente isto que vai agora ficar escrito — e respondo a toda essa infâmia com a alegria. Puríssima e levíssima alegria. A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas — porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres. Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade. Eu estou — apesar de tudo oh apesar de tudo — estou sendo alegre neste instante-já que passa se eu não fixá-lo com palavras. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor it, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it. E conformar-me não como vencida mas num allegro com brio.

Clarice Lispector, in 'Água Viva'


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Elegia Lírica
em 19/10/2013 20:38:01 (2248 leituras)
Vinícius de Moraes


(...)

A minha namorada é tão bonita, tem olhos como besourinhos do céu

Tem olhos como estrelinhas que estão sempre balbuciando aos passarinhos...

É tão bonita! tem um cabelo fino, um corpo menino e um andar pequenino

E é a minha namorada... vai e vem como uma patativa, de repente morre de amor

Tem fala de S e dá a impressão que está entrando por uma nuvem adentro...

Meu Deus, eu queria brincar com ela, fazer comidinha, jogar nai-ou-nentes

Rir e num átimo dar um beijo nela e sair correndo

E ficar de longe espiando-lhe a zanga, meio vexado, meio sem saber o que faça...

A minha namorada é muito culta, sabe aritmética, geografia, história, contraponto

E se eu lhe perguntar qual a cor mais bonita ela não dirá que é a roxa porém brique.

Ela faz coleção de cactos, acorda cedo vai para o trabalho

E nunca se esquece que é a menininha do poeta.

Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer ir à Europa? ela diz: Quero se mamãe for!

Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer casar comigo? Ela diz... — não, ela não acredita.

É doce! gosta muito de mim e sabe dizer sem lágrimas:

Vou sentir tantas saudades quando você for...

É uma nossa senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa

Que me faz chorar na rua, dançar no quarto, ter vontade de me matar e de ser presidente da república.

É boba, ela! tudo faz, tudo sabe, é linda, ó anjo de Domremy!

Dêem-lhe uma espada, constrói um reino ; dêem-lhe uma agulha, faz um crochê

Dêem-lhe um teclado, faz uma aurora, dêem-lhe razão, faz uma briga...!

E do pobre ser que Deus lhe deu, eu, filho pródigo, poeta cheio de erros

Ela fez um eterno perdido...


O poema acima foi extraído do livro"Antologia Poética", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 68.


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Jura
em 07/10/2013 00:15:39 (2330 leituras)
Antero de Quental

Pelas rugas da fronte que medita...
Pelo olhar que interroga — e não vê nada...
Pela miséria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita...

Pelo estertor da chama que crepita
No ultimo arranco d'uma luz minguada...
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita...

Por quanto há de fatal, que quanto há misto
De sombra e de pavor sob uma lousa...
Oh pomba meiga, pomba de esperança!

Eu t'o juro, menina, tenho visto
Cousas terriveis — mas jamais vi cousa
Mais feroz do que um riso de criança!




Antero de Quental, in "Sonetos"


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A Torpe Sociedade onde Nasci
em 09/09/2013 21:51:19 (2336 leituras)
António Aleixo


A Torpe Sociedade onde Nasci I

Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.

II

Que feliz eu era então e que alegria...
Que loucura a brincar, santo delírio!...
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p'ra o martírio!

III

Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrível que me impôs
A torpe sociedade onde nasci:
— De ser vítima humilde ou ser algoz...

IV

E agora é o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas não sou o que seria
Se o mundo fosse bom — como não é!

V

Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte...

António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."


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Marinheiro sem mar
em 22/08/2013 20:25:22 (3753 leituras)
Sophia Andresen


Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

Todas as cidades são navios
Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios

E ele vai baloiçando como um mastro
Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.

Nas confusas redes de seu pensamento
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento

E sobe por escadas escondidas
E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro

Vai nos contínuos corredores
Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros
Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros
Porque o seu caminho foi perdido
O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres

E é em vão que ele se ergue entre os sinais
Buscando pela luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há no cais

Nenhum navio lavará o nojo do seu rosto
As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas

Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas

E ao Norte e ao Sul
Ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas

E o espírito do mar pergunta:

"- Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazios
De ondas brancas e fundas
e de verde vazio?"

Ele não dormirá na areia lisa
Entre medusas,conchas e corais

Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão

Porque ele se perdeu do que era eterno
E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade.

(in «Mar Novo», 1958)


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O Conceito de Nós Próprios
em 05/08/2013 17:04:00 (3337 leituras)
Fernando Pessoa


Cada homem, desde que sai da nebulose da infância e da adolescência, é em grande parte um produto do seu conceito de si mesmo. Pode dizer-se sem exagero mais que verbal, que temos duas espécies de pais: os nossos pais, propriamente ditos, a quem devemos o ser físico e a base hereditária do nosso temperamento; e, depois, o meio em que vivemos, e o conceito que formamos de nós próprios - mãe e pai, por assim dizer, do nosso ser mental definitivo.
Se um homem criar o hábito de se julgar inteligente, não obterá com isso, é certo, um grau de inteligência que não tem; mas fará mais da inteligência que tem do que se julgar estúpido. E isto, que se dá num caso intelectual, mais marcadamente se dá num caso moral, pois a plasticidade das nossas qualidades morais é muito mais acentuada que a das faculdades da nossa mente.
Ora, ordinariamente, o que é verdade da psicologia individual - abstraindo daqueles fenómenos que são exclusivamente individuais - é também verdade da psicologia colectiva. Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente.
O primeiro passo passou para uma regeneração, económica ou outra, de Portugal é criarmos um estado de espírito de confiança - mais, de certeza, nessa regeneração. Não se diga que os «factos» provam o contrário. Os factos provam o que quer o raciocinador. Nem, propriamente, existem factos, mas apenas impressões nossas, a que damos, por conveniência, aquele nome. Mas haja ou não factos, o que é certo é que não existe ciência social - ou, pelo menos, não existe ainda. E como assim é, tanto podemos crer que nos regenaremos, como crer o contrário. Se temos, pois, a liberdade de escolha, porque não escolher a atitude mental que nos é mais favorável em vez daquela que nos é menos?

Fernando Pessoa, in 'Teoria e Prática do Comércio'


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Em Louvor da Miniblusa
em 16/07/2013 18:47:40 (1980 leituras)
Carlos Drummond de Andrade



Hoje vai a antiga musa
celebrar a nova blusa
que de Norte a Sul se usa
como graça de verão.
Graça que mostra o que esconde
a blusa comum, mas onde
um velho da era do bonde
encontrará mais mensagem
do que na bossa estival
da rola que ao natural
mostra seu colo fatal,
ou quase, pois tanto faz,
se a anatomia me ensina
a tocar a concertina
em busca ao mapa da mina
que ora muda de lugar?
Já nem sei mais o que digo
ao divisar certo umbigo:
penso em flor, cereja, figo,
penso em deixar de pensar,
e em louvar o costureiro
ou costureira — joalheiro
que expõe a qualquer soleiro
esse profundo diamante
exclusivo antes das praias
(Copas, Leblons, Marambaias
e suas areias gaias).
Salve, moda, salve, sol
de sal, de alegre inventiva,
que traz à matéria viva
a prova figurativa!
Pode a indústria de fiação
carpir-se do pouco pano
que o figurino magano
reduz a zero, cada ano.
Que importa? A melhor fazenda
o mais cetínio tecido,
que me bota comovido
e bole em cada sentido,
ainda é a doce pele,
de original padronagem,
pois adere a cada imagem
qual sua própria tatuagem
que ninguém copiará.
Miniblusa, miniblusa,
garanto que quem te acusa
a cuca há de ter confusa.
És pano de boca? O palco
tão redondo quão seleto
que abres ao avô e ao neto
(à vista, apenas), objeto
é de puro encantamento.
No cenário em suave curva
nosso olhar jamais se turva,
falte embora rima em urva,
pois é pelúcia-piscina
onde a ilha umbilical
vale a urna de São Gral,
o Tesouro Nacional,
vale tudo... e lembra a drósera,
flor carnívora exigente
que pra devorar a gente
não cochila certamente.
Drósera? Drupa, talvez,
carnoso fruto de vida,
drusa tão bem inserida
na superfície polida
que a blusa desvesteveste.
Ai, blublu de semiblusa,
de Ipanema ou Siracusa,
que me perco na fiúza
de capturar o mistério
— Quid mulieris... ? — do corpóreo.
Mas chega de latinório,
vaníloquo verbolório
e versiconversa obtusa
de tudo que a musa canta,
pois mais alto se alevanta
o sem-véu da miniblusa.

Carlos Drummond de Andrade, in 'O Poder Ultrajovem'


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Vida e Obra
em 07/07/2013 21:50:58 (1863 leituras)
Jorge de Sena

Jorge Cândido de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978) foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português.

Primeiros anos

Filho único de Augusto Raposo de Sena, natural de Ponta Delgada e comandante da marinha mercante, e de Maria da Luz Teles Grilo de Sena, natural da Covilhã e dona-de-casa. Ambas as famílias eram da alta burguesia, a paterna de suposta linhagem aristocrática de militares e altos funcionários, e a materna de comerciantes ricos do Porto. Segundo relata no seu conto Homenagem ao Papagaio Verde, teve uma infância recolhida, solitária e infeliz, o que fez com se tornasse introspectivo, observador e imaginativo.

Fez a instrução primária e os primeiros anos do liceu no Colégio Vasco da Gama. Concluiu os estudos secundários no Liceu Camões, onde foi aluno de Rómulo de Carvalho. Era um jovem que lia avidamente, tocava piano e escrevia poemas. Na Faculdade de Ciências de Lisboa, fez os exames preparatórios com as notas mais elevadas.

Na Escola Naval

Sena nutria a ideia algo romântica de se tornar oficial da marinha, seguindo as pisadas do pai. Em 1938, aos 17 anos, entrou para a Escola Naval como 1º do seu curso. A 2 de Outubro de 1937, iniciou a sua viagem de instrução a bordo do navio-escola Sagres. Visitou os portos de S. Vicente, Santos, Lobito, Luanda, S. Tomé e Dakar, chegando a Lisboa no final de Fevereiro de 1938. O contacto com a imensidão do oceano, a azáfama da vida a bordo e o movimento e mudança constantes agradaram ao jovem Sena, mas nem tudo correu bem. Segundo o relato de um antigo camarada de curso, naquele ano a viagem de instrução foi excepcional e particularmente dura e exigente em termos de preparação e destreza física, copiando o modelo da marinha alemã. Na parte teórica do curso Sena era brilhante, mas em termos atléticos era medíocre e apesar dos muitos esforços que fez não conseguiu satisfazer as elevadas expectativas do comandante do curso, que parecia nutrir um ódio de estimação pelo cadete contemplativo e intelectual. No final da viagem, foi comunicado a Sena que iria ser proposta a sua exclusão da Marinha por lhe faltarem as "necessárias qualidades" para oficial. Sena ficou profundamente frustrado e desgostoso com esta rejeição e o seu afastamento definitivo de um modo de vida que tanto almejava.

Engenharia civil, casamento e primeiras obras

Apesar da sua inclinação natural para a literatura, o sobredotado Sena decidiu frequentar o curso de Engenharia Civil, iniciando-o em Lisboa e concluindo-o no Porto, em 1944, com a ajuda financeira dos seus amigos Ruy Cinatti e José Blanc de Portugal. O curso pouco o entusiasmou, mas durante todo esse tempo escreveu bastantes poemas, artigos, ensaios e cartas. Desde os 16 anos que escrevia e em 1940, sob o pseudónimo de Teles de Abreu, publicou os seus primeiros poemas na revista Cadernos de Poesia, dirigida por Cinatti, Blanc de Portugal e Tomás Kim. Em 1942, publica o seu primeiro livro de poemas, Perseguição, que não impressiona muito o seu amigo e crítico João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro considera-o um livro revelador mas difícil.

Em 1947, Sena inicia a sua carreira de engenheiro, que durou 14 anos. Trabalhou como engenheiro civil na Câmara Municipal de Lisboa, na Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização e na Junta Autónoma das Estradas (JAE), onde permanecerá até ao seu exílio para o Brasil em 1959.

Em 1940, no Porto, Jorge de Sena conhece e torna-se amigo de Maria Mécia de Freitas Lopes (irmã do crítico e historiador literário Óscar Lopes), começando a namorar em 1944 e casando-se em 1949. Jorge de Sena e Mécia de Sena tiveram nove filhos.
Mécia, sua incansável companheira e enérgica colaboradora, apoiando o escritor nas inúmeras crises que lhe surgiram ao longo de uma vida por vezes atribulada.
Trabalhava incansavelmente, para sustentar a crescente família. Além do seu absorvente trabalho diurno na JAE (que lhe possibilitou viajar e conhecer o Portugal profundo), Sena também se dedicava à direcção literária em editoras, à tradução e revisão de textos, ocupações que lhe roubavam precioso tempo para a investigação literária e a para a sua obra. A banalidade e a pequenez do quotidiano no Portugal de Salazar das décadas de 1940 e 1950 atormentam-no, bem assim como a mediocridade, a mesquinhez e a intriga dos meios literários, a opressão política, a censura literária, resultando num ambiente de trabalho sufocante e absolutamente frustrante, mas que não deixam de o inspirar para o poema É tarde, muito tarde na noite…
Durante esses anos publica várias obras: O Dogma da Trindade Poética – Rimbaud (1942), Coroa da Terra, poesia (1946), Páginas de Doutrina Estética de Fernando Pessoa (organização), 1946, Florbela Espanca (1947), Pedra Filosofal poesia (1950), A Poesia de Camões (1951), etc.

Exílio no Brasil

A sua situação como escritor e cidadão estava a tornar-se insustentável. Como escritor, não tinha tempo livre para escrever, apenas o podia fazer de modo insuficiente e limitado à noite e aos domingos. Também o facto de não pertencer a nenhum círculo académico e a falta de apoio institucional lhe frustrava qualquer pretensão de poder vir a editar alguma obra mais ambiciosa. Por outro lado, a sua participação numa tentativa revolucionária abortada em 12 de Março de 1959, colocou-o em posição de prisão iminente, no caso muito provável de algum dos conspiradores presos pela PIDE denunciar os que ainda se encontravam livres.
Em Agosto de 1959, viajou até ao Brasil, convidado pela Universidade da Bahia e pelo Governo Brasileiro a participar no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Tendo sido convidado como catedrático contratado de Teoria da Literatura, em Assis, no Estado de S. Paulo, aproveitou essa oportunidade e aceitou o lugar, iniciando assim o seu longo exílio. Ele faz amizade com o poeta Jaime Montestrela, que dedicou o seu livro Cidade de lama. Por motivos profissionais teve de adoptar a cidadania brasileira.
Não foi contudo um exílio libertador. Sentia saudades da pátria, apesar do rancor perene que nutria pela pequenez, mesquinhez e falta de reconhecimento nacionais que o atormentariam até ao final da vida.
Em 1961, Jorge de Sena foi ensinar Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Em 1964, depois de vencer alguns preconceitos académicos pelo facto de ser licenciado em Engenharia, Jorge de Sena defendeu a sua tese de doutoramento em Letras (Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular), tendo obtido os títulos académicos "com distinção e louvor".
O período de seis anos que passou no Brasil foi muito produtivo. Finalmente, tinha toda a disponibilidade para se dedicar à sua obra com a devida profundidade e profissionalismo. Poesia, teatro, ficção, ensaísmo e investigação. Parte do romance Sinais de Fogo e a totalidade dos contos Novas Andanças do Demónio foram escritos neste período.
Estados Unidos e últimos anos[editar]
A degradação da situação política no Brasil, com a instalação de uma ditadura militar a partir de Março de 1964, fez com que Jorge de Sena, mais do que nunca avesso a prepotências, aceitasse um convite para ensinar Literatura de Língua Portuguesa na Universidade de Wisconsin, para partir para os Estados Unidos em Outubro de 1965. Em 1967 foi nomeado catedrático do Departamento de Espanhol e Português da referida universidade.
De 1970 até 1978 foi catedrático efectivo de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara. Apesar da satisfação de ensinar e da amizade que os alunos lhe dedicavam, Sena não foi feliz. Queixava-se da "medonha solidão intelectual da América" onde não havia "convívio intelectual algum" e da esterilidade e espírito burguês do meio académico, que não se interessava pela sua obra.
Quando se deu o 25 de Abril Jorge de Sena ficou entusiasmado e queria regressar definitivamente a Portugal, ansioso de dar a sua colaboração para a construção da democracia. Sena visitou Portugal, contudo, nenhuma universidade ou instituição cultural portuguesa se dignou convidar o escritor para qualquer cargo que fosse, facto que muito o desiludiu e amargurou, decidindo continuar a viver nos Estados Unidos, onde tinha a sua carreira estabelecida.
Jorge de Sena morreu em 4 de Junho de 1978, aos 58 anos, de cancro. Em 11 de Setembro de 2009, os seus restos mortais foram trasladados de Santa Barbara, Califórnia, para o cemitério do Prazeres em Lisboa, depois de uma cerimónia de homenagem na Basílica da Estrela, com a presença de familiares, amigos e entidades oficiais.1

Obra

Foi um dos mais influentes intelectuais portugueses do século XX, com vasta obra de ficção, drama, ensaio e poesia, além de importante epistolografia com figuras tutelares da literatura portuguesa e brasileira. A sua obra de ficção mais famosa é o romance autobiográfico Sinais de Fogo, adaptado ao cinema em 1995 por Luís Filipe Rocha. Grande parte da sua obra foi publicada postumamente pelos cuidados da viúva, Mécia de Sena.

Poesia

Perseguição (1942)
Coroa da Terra (1946)
Pedra Filosofal (1950)
As Evidências (1955)
Fidelidade (1958)
Metamorfoses (1963)
Arte de Música (1968)
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969)
Exorcismos (1972)
Conheço o Sal e Outros Poemas (1974)
Sobre Esta Praia (1977)
Quarenta Anos de Servidão (1979, póstumo)
Dedicácias (1980, póstumo)
Sequências (1980, póstumo)
Visão Perpétua (1982, póstumo)
Post-Scriptum I (1985, póstumo)
Post-Scriptum II (1985, póstumo)
Poesia I (1977)
Poesia II (1978)
Poesia III (1978)

Ficção

Andanças do Demónio (1960, contos)
Novas Andanças do Demónio (1966, contos)
Os Grão-Capitães (1976, contos)
O Físico Prodigioso (1977, novela)
Sinais de Fogo (1979, romance póstumo)
Génesis (1983, póstumo)

Drama

O Indesejado (1951)
Ulisseia Adúltera (1952)
O Banquete de Dionísos (1969)
Epimeteu ou o Homem Que Pensava Depois (1971)

Ensaios

Da Poesia Portuguesa (1959)
O Poeta é um Fingidor (1961)
O Reino da Estupidez (1961)
Uma Canção de Camões (1966)
Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969)
A Estrutura de Os Lusíadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia Peninsular do Século XVI (1970)
Maquiavel e Outros Estudos (1973)
Dialécticas Aplicadas da Literatura (1978)
Fernando Pessoa & Cia. Heterónima (1982, póstumo)
Correspondências com
Guilherme de Castilho, INCM, 1981
Mécia de Sena (Anos de Portugal), INCM, 1982
José Régio, INCM, 1986
Vergílio Ferreira, INCM, 1987
Taborda de Vasconcelos, ed. Autor, 1987
Eduardo Lourenço, INCM, 1991
Dante Moreira Leite, UNICAMP, 1996
Sophia de Melo Breyner, Guerra & Paz, 2006
José-Augusto França, INCM, 2007
Raul Leal, Guerra & Paz, 2010
Delfim Santos, Guerra & Paz, 2011
Ramos Rosa, Guimarães, 2012
Mécia de Sena (Anos do Brasil), Afrontamento, 2013
João Gaspar Simões, Guerra & Paz, 2013

Prémios

Recebeu o Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina, pelo conjunto da sua obra poética, e foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique, por serviços prestados à comunidade portuguesa. Recebeu, postumamente, a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago. Em 1980, foi inaugurado o Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara.

O erotismo segundo Jorge de Sena

Para se compreender o espírito livre e independente de Jorge de Sena, são úteis os seguintes textos, extraídos da obra Máscaras de Salazar, de Fernando Dacosta:

[...] a mais completa liberdade [deve] ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma sociedade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido ou um grupo de cidadãos hipersensíveis possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. [Um dos] prazeres sexuais dos seres humanos tem sido o de reprimir a sexualidade, a própria e a dos outros. Defendo todas as formas de prostituição, como profissão protegida pela lei e vigiada pela saúde pública. Ainda que isso possa chocar muita gente, parece que, desde sempre, houve machos e fêmeas cujo talento na vida, e cuja vocação definida, é emprestarem o próprio corpo. E quem se vende ou quem compra (o que não tem nada a ver com capitalismo, mas com o direito de qualquer pessoa a dispor de si mesma, em acordo com outra) deve ter a protecção da lei contra redes de exploração, chantagens, etc. O que duas pessoas (ou um grupo delas) fazem uma com a outra, fora das vistas dos demais, não diz respeito a esses demais, a não ser que eles vivam na observação mórbida de imaginarem (num misto de horror e curiosidade, que os torna moralistas raivosos) o que os outros fazem. E o que os outros fazem não altera em nada o equilíbrio social. [A pornografia pode ser] um prazer para muita gente e, às vezes, o único que lhes é concedido, pois as pessoas idosas, solitárias, não atractivas, não encontram nunca o chinelo velho para o seu pé doente. Uma prostituição oficializada é obra de caridade para com os feios e os tímidos. [Porque hão-de ser] só os ricos e os de maiores posses a terem acesso à pornografia, e não os pobres? As classes mais desprotegidas deviam ter a sua pornografia mais barata, subsidiada pelo Governo, se o Governo fosse ao mesmo tempo inteligente e progressista nestas matérias. Somos um país imoral, um país depravado às ocultas. Foi isso, no entanto, que nos salvou de mergulhar nas sombras horrendas do puritanismo. Puritanismo que não é parte da nossa herança cultural. Mil vezes a pornografia do que a castração, a prostituição do que a hipocrisia. Se alguma coisa há que deve ser sagrada, é o prazer sexual entre pessoas mutuamente concordantes em dá-lo e recebê-lo, ou negociá-lo. [Os adolescentes e as crianças sempre souberam] muito mais do que os adultos fingem que eles sabem. Raros terão sido os jovens seduzidos na sua inocência. Na maior parte dos casos, o contrário é que é verdade. Se alguma coisa há que deva ser sagrada, é o prazer sexual entre pessoas concordantes em usufruí-lo e partilhá-lo.

Referências

↑ Parte da informação biográfica coligida a partir de Jorge de Sena por Eugénio Lisboa, Editorial Presença, Lisboa, s/d.

Bibliografia

Edição dirigida por Mécia de Sena, Edições 70
Os grão-capitães (contos). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
Antigas e novas andanças do demónio (contos). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
O Físico prodigioso (novela). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
Sinais de fogo (romance). Obras de Jorge de Sena, Edições 70, Lisboa
Dialécticas teóricas da literatura (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
Dialécticas aplicadas da literatura (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
80 poemas de Emily Dickinson (tradução e apresentação). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista (ensaio). Obras de Jorge de Sena, Lisboa, 1980
A estrutura de "Os Lusíadas" (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa
Trinta anos de Camões (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa, 1980
Fernando Pessoa & C.a Heterónima (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa, 1984
Obras Completas, edição coordenada por Jorge Fazenda Lourenço, ed. Guimarães
I - Sinais de Fogo, Lisboa, 2009
II - O Físico Prodigioso, Lisboa, 2010
III - 80 Poemas de Emily Dickinson, Lisboa, 2010
IV - Antologia Poética, Lisboa, 2010
V - Rever Portugal - Textos Políticos e Afins, Lisboa, 2011
VI - América, América, Lisboa, 2011


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Manhã de Inverno
em 03/07/2013 23:35:58 (3050 leituras)
Machado de Assis

Manhã de Inverno
Coroada de névoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de sono e de preguiça,
Nos olhos da fantástica indolente.

Névoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capelas, lágrimas mais puras.

A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.

Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras úmidas da chuva;
Erma de flores, curva a planta o colo,
E o chão recebe o pranto da viúva.

Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas trêmulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua história escreve.

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
As névoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o vale;
Já se vão descobrindo os horizontes.

Sobe de todo o pano; eis aparece
Da natureza o esplêndido cenário;
Tudo ali preparou co’os sábios olhos
A suprema ciência do empresário.

Canta a orquestra dos pássaros no mato
A sinfonia alpestre, — a voz serena
Acordo os ecos tímidos do vale;
E a divina comédia invade a cena.

Machado de Assis, in 'Falenas'


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Meu Bebé para Dar Dentadas
em 13/06/2013 11:36:54 (2204 leituras)
Fernando Pessoa

Meu Bebé pequeno e rabino:

Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa cousa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra.
Sabes? Estou-te escrevendo mas «não estou pensando em ti». Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da «caça aos pombos»; e isto é uma cousa, como tu sabes, com que tu não tens nada...
Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem-disposta, e eu estava bem-disposto, e o dia estava bem-disposto também. (O meu amigo, Sr. A.A. Crosse está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado.)
Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade. A terceira razão é haver só duas razões, e portanto não haver terceira razão nenhuma. (Álvaro de Campos, engenheiro.)
Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo... Meu Bebé para sentar no colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para... (e depois o Bebé é mau e bate-me...) «Corpinho de tentação» te chamei eu; e assim continuas sendo, mas longe de mim.
Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho... Vem... Estou tão só, «tão só de beijinhos»...
Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades de mim a valer. Ao menos isso era uma consolação... Mas tu, se calhar, pensas menos em mim do que no rapaz do gargarejo, e no D. A. F. e no guarda-livros da C. D. & C! Má, má, má, má, má...!!!!!
Açoites é que tu precisas.
Adeus; vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para baixo, para descansar o espírito. Assim fazem todos os grandes homens — pelo menos quando têm — 1.° espírito, 2.° cabeça, 3.° balde onde meter a cabeça.
Um beijo só durante todo o tempo que ainda o mundo tem que durar, do teu, sempre e muito teu.

Fernando (Nininho)

Fernando Pessoa, in 'Carta a Ofélia Queiroz' (5 Abr 1920)


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A carta que eu sei de cor
em 05/06/2013 18:18:18 (5790 leituras)
Guilherme de Almeida

E tu me escreves: - "Meu amor, minha saudade!
Há tanto tempo não te vejo: há quasi um dia;
estou tão longe: do outro lado da cidade...
Tive sonhos tão bons esta noite! Vem vê-los:
ainda estão nos meus olhos loucos de alegria.
Sabes? esta manhã cortei os meus cabelos.
Denunciavam-me tanto! E a ti também, meu poeta...
Que alívio! Tenho a sensação de haver cortado
relações com alguma amiguinha indiscreta.
Agora estamos mais a nosso gosto. Agora
o meu gosto será bem menos complicado
Para pôr o chapéu, quando me for embora...
Sinto-me tão feliz! Tive um riso sincero
ao meu espelho: e esse sorriso revelou-me
que o meu único mal é este bem que eu te quero..."
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E quando chego ao fim da carta, sinto, vejo
que a minha boca toma a forma do teu nome:
a forma que ela tem quando vai dar um beijo...



fonte: 'Era uma vez...' 1922, Casa Mayensa, São Paulo, SP


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Fogo e Gelo
em 05/06/2013 18:08:57 (7919 leituras)
Robert Frost


Alguns dizem que o mundo acabará em fogo,
Alguns dizem em gelo.
Do que provei do desejo o jogo
Fico com aqueles que favorecem o fogo.
Mas se tivesse que duplamente sofrê-lo,
Eu penso que conheço bastante do ódio
Para dizer que para destruição gelo
Também é ótimo
E suficiente pra tê-lo.



tradução minha
Original:

Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I ‘ve tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.

– Robert Frost, Fire and Ice


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O EMPRÉSTIMO
em 28/05/2013 15:58:36 (2036 leituras)
Machado de Assis

O Empréstimo

Machado de Assis


Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.

E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.

Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.

- Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.

Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.

- Não se lembra de mim?

- Não me lembro...

- Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja se se lembra do Custódio.

- Ah!

Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.

Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.

Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.

- Venho pedir-lhe uma escritura...

Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos óculos e esperou.

- Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...

- Se estiver nas minhas mãos...

- O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, - ou a três, com juro módico...

- Cinco contos?

- Sim, senhor.

- Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?

- Ora, se o senhor quisesse...

- Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.

A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.

- Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...

- Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas...

Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.

- Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?

- Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.

- Quinhentos mil-réis?

- Não; não posso.

- Nem quinhentos mil-réis?

- Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?

- Não, senhor.

- Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e...

Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, - "tapar um buraco". E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...

- Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...

- Não imagina os apuros em que estou!

- Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas-d'água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...

- Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.

- Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.

- Nem cem mil-réis!

- Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?

Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; - não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.

Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem...

- Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.

- Quer ver?

E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.

- Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?

Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, - um até breve cheio de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.


Texto extraído do livro "Contos: uma antologia", Cia. das Letras - São Paulo, 1998, introdução e notas de John Gledson.

Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".


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O Povo está Divorciado da Cultura
em 19/05/2013 01:50:04 (2362 leituras)
Miguel Torga

O povo está divorciado da cultura, e encolhe-se cada vez mais na sua fome e na sua ignorância. Somos nós, os que saímos dele e o queremos verdadeiramente servir, que temos o dever de o procurar, de o esclarecer, de o interessar activamente na sua própria salvação. Que lhe importam os grandes livros, se ele os não pode nem sequer ler? Que lhe importam as grandes sinfonias, se ele as não sabe ouvir? é urgente chamar o povo à realidade nacional. É preciso interessá-lo de verdade no processo social, onde ele tem o único papel que conta.
— Para isso?...
— Convidá-lo desde já a votar livre e claramente. Chamá-lo a determinar-se, a escolher os seus homens, a responsabilizar-se no seu destino,
— Esse destino é?...
— O destino de todos os corpos vivos: crescer, multiplicar-se, procurar a felicidade, e deixar no seu caminho uma nítida e aberta marca de compreensão e de amor.

Miguel Torga, in "Diário (1945)"


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DIA DAS MÃES
em 15/05/2013 21:19:42 (1905 leituras)
Júlio Saraiva

DIA DAS MÃES
- para aquelas que embalam seus filhos mortos


suspiro de mulher cansada
na solidão nublada do quarto
um berço imaginário e vazio ao lado da cama
um choro feito de silêncio - e só
ardendo bem lá no fim-do-mundo da memória
lágrimas deixaram de ser lágrimas
mas o tempo impiedoso insiste
em traze-las de volta - sempre...
de que serve o poema nessas horas?

(11-05-12)

http://www.currupiao.blogspot.it/2012/05/dia-das-maes.html


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Tolerância às Opiniões
em 26/04/2013 21:24:03 (2059 leituras)
Agostinho da Silva

Para que os homens possam sentir-se felizes com a minha companhia, é necessário antes de tudo que eu tenha a grande força de ver como prováveis as opiniões a que aderiram, desde que as não venham contradizer os factos que posso observar; não devo supor-me infalível; não devo considerar-me a inteligência superior e única entre o bando de pobres seres incapazes de pensar; cumpre-me abafar todo o ímpeto que possa haver dentro de mim para lhes restringir o direito de pensarem e de exprimirem, como souberem e quiserem, os resultados a que puderam chegar; de outro modo, nada mais faria de que contribuir para matar o universo: porque ele só vive da vida que lhe insufla o pensamento poderoso e livre.

Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes '


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A Única Crítica é a Gargalhada
em 22/04/2013 21:43:14 (3638 leituras)
Eça de Queirós

A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel – a gargalhada! Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime – nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça.

Eça de Queirós, in 'Uma Campanha Alegre'


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A Velhice Pede Desculpas
em 17/04/2013 19:39:56 (2591 leituras)
Cecília Meireles

A Velhice Pede Desculpas

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles, in 'Poemas (1958)'


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O Beijo Mata o Desejo
em 11/04/2013 21:43:28 (2612 leituras)
António Aleixo

O Beijo Mata o Desejo

MOTE

«Não te beijo e tenho ensejo
Para um beijo te roubar;
O beijo mata o desejo
E eu quero-te desejar.»

GLOSAS

Porque te amo de verdade,
'stou louco por dar-te um beijo,
Mas contra a tua vontade
Não te beijo e tenho ensejo.

Sabendo que deves ter
Milhões deles p'ra me dar,
Teria que enlouquecer
Para um beijo te roubar.

E como em teus lábios puros,
Guardas tudo quanto almejo,
Doutros desejos futuros
O beijo mata o desejo.

Roubando um, mil te daria;
O que não posso é jurar
Que não te aborreceria,
E eu quero-te desejar!

António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."


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