 
  
    	VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera
    	Publicado em 28/02/2009 15:11:13 | Tópico: Fernando Pessoa
 
  |  Alberto Caeiro   VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera          Num meio-dia de fim de primavera       Tive um sonho como uma fotografia.       Vi Jesus Cristo descer à terra.       Veio pela encosta de um monte       Tornado outra vez menino,       A correr e a rolar-se pela erva       E a arrancar flores para as deitar fora       E a rir de modo a ouvir-se de longe.       Tinha fugido do céu.       Era nosso demais para fingir       De segunda pessoa da Trindade.       No céu era tudo falso, tudo em desacordo       Com flores e árvores e pedras.       No céu tinha que estar sempre sério       E de vez em quando de se tornar outra vez homem       E subir para a cruz, e estar sempre a morrer       Com uma coroa toda à roda de espinhos       E os pés espetados por um prego com cabeça,       E até com um trapo à roda da cintura       Como os pretos nas ilustrações.       Nem sequer o deixavam ter pai e mãe       Como as outras crianças.       O seu pai era duas pessoas       Um velho chamado José, que era carpinteiro,       E que não era pai dele;       E o outro pai era uma pomba estúpida,       A única pomba feia do mundo       Porque não era do mundo nem era pomba.       E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. 
       Não era mulher: era uma mala       Em que ele tinha vindo do céu.       E queriam que ele, que só nascera da mãe,       E nunca tivera pai para amar com respeito,       Pregasse a bondade e a justiça! 
       Um dia que Deus estava a dormir       E o Espírito Santo andava a voar,       Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.       Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.       Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.       Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz       E deixou-o pregado na cruz que há no céu       E serve de modelo às outras.       Depois fugiu para o sol       E desceu pelo primeiro raio que apanhou. 
       Hoje vive na minha aldeia comigo.       É uma criança bonita de riso e natural.         Limpa o nariz ao braço direito,        Chapinha nas poças de água,       Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.         Atira pedras aos burros,       Rouba a fruta dos pomares       E foge a chorar e a gritar dos cães.       E, porque sabe que elas não gostam       E que toda a gente acha graça,       Corre atrás das raparigas pelas estradas       Que vão em ranchos pela estradas       com as bilhas às cabeças       E levanta-lhes as saias. 
       A mim ensinou-me tudo.       Ensinou-me a olhar para as cousas.       Aponta-me todas as cousas que há nas flores.       Mostra-me como as pedras são engraçadas        Quando a gente as tem na mão       E olha devagar para elas. 
       Diz-me muito mal de Deus.       Diz que ele é um velho estúpido e doente,       Sempre a escarrar no chão       E a dizer indecências.       A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.       E o Espírito Santo coça-se com o bico       E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.       Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.       Diz-me que Deus não percebe nada       Das coisas que criou —       "Se é que ele as criou, do que duvido" —       "Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,        Mas os seres não cantam nada.       Se cantassem seriam cantores.       Os seres existem e mais nada,       E por isso se chamam seres."       E depois, cansados de dizer mal de Deus,       O Menino Jesus adormece nos meus braços       e eu levo-o ao colo para casa.       .............................................................................       Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.       Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.       Ele é o humano que é natural,       Ele é o divino que sorri e que brinca.       E por isso é que eu sei com toda a certeza       Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. 
       E a criança tão humana que é divina       É esta minha quotidiana vida de poeta,       E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,       E que o meu mínimo olhar       Me enche de sensação,       E o mais pequeno som, seja do que for,       Parece falar comigo. 
       A Criança Nova que habita onde vivo       Dá-me uma mão a mim       E a outra a tudo que existe       E assim vamos os três pelo caminho que houver,       Saltando e cantando e rindo       E gozando o nosso segredo comum       Que é o de saber por toda a parte       Que não há mistério no mundo       E que tudo vale a pena. 
       A Criança Eterna acompanha-me sempre.       A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.       O meu ouvido atento alegremente a todos os sons       São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. 
       Damo-nos tão bem um com o outro       Na companhia de tudo       Que nunca pensamos um no outro,       Mas vivemos juntos e dois       Com um acordo íntimo       Como a mão direita e a esquerda. 
       Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas       No degrau da porta de casa,       Graves como convém a um deus e a um poeta,       E como se cada pedra       Fosse todo um universo       E fosse por isso um grande perigo para ela       Deixá-la cair no chão. 
       Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens       E ele sorri, porque tudo é incrível.       Ri dos reis e dos que não são reis,       E tem pena de ouvir falar das guerras,       E dos comércios, e dos navios       Que ficam fumo no ar dos altos-mares.       Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade       Que uma flor tem ao florescer       E que anda com a luz do sol       A variar os montes e os vales,       E a fazer doer nos olhos os muros caiados. 
       Depois ele adormece e eu deito-o.       Levo-o ao colo para dentro de casa       E deito-o, despindo-o lentamente       E como seguindo um ritual muito limpo       E todo materno até ele estar nu. 
       Ele dorme dentro da minha alma       E às vezes acorda de noite       E brinca com os meus sonhos.       Vira uns de pernas para o ar,       Põe uns em cima dos outros       E bate as palmas sozinho       Sorrindo para o meu sono.       ......................................................................       Quando eu morrer, filhinho,       Seja eu a criança, o mais pequeno.       Pega-me tu ao colo       E leva-me para dentro da tua casa.       Despe o meu ser cansado e humano       E deita-me na tua cama.       E conta-me histórias, caso eu acorde,       Para eu tornar a adormecer.       E dá-me sonhos teus para eu brincar       Até que nasça qualquer dia       Que tu sabes qual é.       .....................................................................       Esta é a história do meu Menino Jesus.       Por que razão que se perceba       Não há de ser ela mais verdadeira       Que tudo quanto os filósofos pensam       E tudo quanto as religiões ensinam?  
 
 
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