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 Receita de MulherPublicado em 08/03/2011 15:57:31 | Tópico: Vinícius de Moraes
 
 |  | Receita de mulher 
 As muito feias que me perdoem
 Mas beleza é fundamental. É preciso
 Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
 Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
 Em tudo isso (ou então
 Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
 Não há meio-termo possível. É preciso
 Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
 Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
 Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
 É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
 No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
 Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
 Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
 Alguma coisa além da carne: que se os toque
 Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
 Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
 Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
 Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
 Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
 Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
 Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
 É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
 Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
 No enlaçar de uma cintura semovente.
 Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
 É como um rio sem pontes. Indispensável.
 Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
 A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
 Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
 E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
 Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
 Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
 Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
 E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
 No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce
 relva com aroma próprio
 Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
 Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
 De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
 De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
 Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
 Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
 Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
 A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
 Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
 E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
 Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
 Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
 Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
 Ah, que a mulher de sempre a impressão de que se fechar os olhos
 Ao abri-los ela não estará mais presente
 Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
 E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
 O fel da dúvida. Oh, sobretudo
 Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
 Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
 De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
 Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
 O impossível perfume; e destile sempre
 O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
 Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
 Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
 Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação imunerável.
 
 
 Vinícius de Moraes
 
 
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