III - Ao Entardecer

Publicado em 28/11/2008 22:50:00 | Tópico: Fernando Pessoa

Alberto Caeiro

III - Ao Entardecer

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...





Observação:


O Guardador de Rebanhos é um poema constituído por 49 textos escritos pelo heterônimo Fernando Pessoa, Alberto Caeiro em 1914 e Fernando Pessoa atribuiu sua gêneses a uma única noite de insônia de Caeiro. Foram publicados em 1925 nas 4ª e 5ª edições da revista Athena, com exceção do 8º poema do conjunto que só viria a ser publicado em 1931, na revista Presença.

A obra contêm poemas "em que a personagem surge sob iluminações imprevistas, revelando aspectos que contradizem o seu ideal de Si-Mesmo e lhe conferem verossimilhança ficcional". Os poemas mostram a forma simples e natural de sentir e dizer de seu autor, voltado para a natureza e as coisas puras.

O Guardador de Rebanhos nos transmite ou propõe uma forte cosmovisão ao querer reintroduzir aparentemente um mundo pagão no século vinte de um ocidente cristianizado, mas também é certo que não possui uma ordem ou hierarquia de valores como é apanágio do poema épico. Pelo contrário, a sua forma modular permite que o poema se alongue com repetições de motivos que passam de texto para texto não resolvidos ou por resolver, numa recombinação sucessiva onde emerge uma insuspeita temporalidade. Assim, a natureza aleatória das séries (outra designação para o poema serial) sugere que estas são anárquicas, não porque acabem num tumulto de sentidos incompreensíveis, mas porque se recusam a impor uma ordem externa nos assuntos que tratam ou desenvolvem.

Por outro lado, se o poema de Caeiro oferece um texto final de adeus, este final é completamente arbitrário, não decorre de nenhuma progressão temática ou narrativa que o exija ou a venha coroar, nem, por outro lado, de uma finalidade ou intencionalidade, como acontece necessariamente com o poema épico. Além disso, a concatenação dos textos que se seguem uns aos outros não é subordinada, antes denuncia o seu acaso de inspiração.

O Guardador de Rebanhos guarda pensamentos, que são sensações. O símbolo do rebanho é a representação do limite da existência humana, onde reside a liberdade. O que possui rastros do religioso torna-se demoníaco. O símbolo rompe a angústia da separação e busca na dimensão do divino, o divino que se rompera.

Na obra há um aperfeiçoamento gradual neste sentido: os poemas finais – e sobretudo os quatro ou cinco que precedem os dois últimos – são de uma perfeita unidade ideo-emotiva.

Alberto Caeiro é o poeta voltado para a simplicidade e as coisas puras. Vive em contato com a natureza, extraindo dela os valores ingênuos com os quais alimenta a alma. Embora contrária às filosofias tradicionais, essa faceta de Fernando Pessoa segue ainda os princípios acadêmicos em seus versos. É o lírico que restaura o mundo em ruínas, quando se relaciona com os seres sensitivos, ou o bucólico que foge para o campo, onde encontra maneira poética de sentir e de viver. Em Caeiro há uma "ciência espontânea", um "misticismo materialista" e uma "simplicidade complexa" - "atributos paradoxais que servem para intensificar e tornar crível a sua extraordinária singularidade"

Fonte: www.passeiweb.com




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