Todas as mensagens (Xavier_Zarco)


« 1 2 3 (4) 5 6 7 ... 82 »


Sobre "Ausência de mim", de João C. Santos
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Ausência de mim", de João C. Santos
(Publicado a 04.12.2013, em www.euxz.blogspot.com)



Esta obra, “Ausência de mim”, da autoria de João C. Santos é, pelo menos para mim, a confirmação de que estamos perante um autor de excelente nível, do qual já conhecia múltiplos esparsos.

E digo-o porque é raro, como leitor, encontrar um primeiro livro sem que este seja meramente um somatório de textos desligados, sem que exista um fio condutor entre eles. E o que hoje aqui se pode ver não é um mero objecto a que designamos por livro, mas um livro com uma obra lá dentro.

Uma obra madura porque meditada, arquitectada e executada para ser um corpo íntegro ou, como se costuma dizer, com cabeça, tronco e membros.

“Ausência de mim” denota logo pelo título um estado precário do ser, mas revela também a possibilidade da observação do eu, ou dos eus, como se se recorresse a uma espécie de experiência extra-corpórea, algo que muitas pessoas referem, sobretudo quando saem de um estado de coma.

Uma sensação de um outro corpo, de natureza imaterial, em nós existir e do corpo material se ausentar.

Este estado, à falta de melhor termo, de alteridade, ou seja: do que é outro, pode subentender-se logo na abertura e no final se repete, quando o poeta escreve, e passo a citar:

“o sonho de viver só tem forma quando se sente a morte”(1).

E pouco depois afirma:

“Vou ao lugar onde deixo o mais importante, a alma”(2)

ou

“levo morto o corpo nos dias em que acordo a alma”(3).

Há no fundo uma ideia de migração, um sair do corpo físico, mas um sair vigilante, para melhor meditar sobre o próprio eu.

Mas o João C. Santos, na minha opinião, vai mais longe neste seu livro. Parece-me que não pretende um resguardo puramente lírico, baseado no eu ou nos eus, mas uma meditação sobre a própria matéria com que se ergue a arte poética.

Repare-se, logo no quarto fragmento, que ele expressa o seguinte:

“As palavras crescem quando as devoramos, é na procura que se encontra a essência de qualquer arte.”(4)

Quase diria que há neste “Ausência de mim” a presença de Octávio Paz quando este mencionou que

“o homem é um ser que se criou ao criar a linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo.”(5)

A outra questão, na minha opinião, relevante neste livro do João C. Santos prende-se com o conceito de missão do intelectual. Enquadro-o na linha do que defende Juan Manuel de Prada, que essa missão é a de polemicar o seu tempo, ou seja. discuti-lo, travar polémica.

De facto, a solidão a que este personagem, o outro do eu, vive é algo que, na sociedade que edificámos, se torna cada vez mais presente, melhor: cada vez mais omnipresente.

A ideia do colectivo esvai-se em cada segundo que passa, o mundo desenha-se egocêntrico, o que conduz, inevitavelmente, à solidão, à ideia de solidão, recorrendo a um lugar comum, mesmo que estejamos no meio da multidão.

Talvez por esse factor, a ausência, ela própria, recebe a função de personagem. Ela é o repto, a voz que sussurra e que grita, dentro do poema fragmentado que João C. Santos ergueu.

Daí a coexistência de um discurso tendencialmente lírico e de um outro quase diria dramático que a introdução de diálogos indicia.

Em suma, sempre com a morte como pano de fundo, este livro mais do que diz, sugere, cria espaço para a necessário reflexão de quem o ousar descobrir.

E, no fundo, não será essa a verdadeira essência de toda a obra de arte?


NOTAS:
(1) SANTOS, João C. - "Ausência de Mim", Edium Editores, São Mamede de Infesta, 2008. P. 9 e P. 73
(2) SANTOS, João C. - Ob. Cit.. P. 12
(3) SANTOS, João C. - Ob. Cit.. P. 23
(4) SANTOS, João C. - Ob. Cit.. P. 13
(5) PAZ, Octávio - in "Citador". http://www.citador.pt/frases/o-homem- ... o-ao-cri-octavio-paz-2597 (último acesso a 19.10.2013). Com a seguinte referência: "Fonte: - O Arco e a Lira".

Criado em: 5/12/2013 12:10
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "27 Poemas", de António Rebordão Navarro
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "27 Poemas", de António Rebordão Navarro
(Publicado a 28.11.2013, em www.euxz.blogspot.com)


Em “27 Poemas”, António Rebordão Navarro escreve no poema “O grito” que:

“essa tarde de sábado em Coimbra,
(Rua da Sofia, há muitos anos),
em que me insultaram de poeta.” (1)

É, portanto, pelo exposto, necessário, para quem reside na cidade de Coimbra, embora no outro lado do rio, na minha sempre bela Santa Clara, mas que, por duas vezes, trabalhou na Rua da Sofia, curiosamente, à data, balizas da minha passagem pelos jornais, repetir o insulto. E se assim é, que assim seja.

Pois fique sabendo, caro António Rebordão Navarro, que, quer queira quer não, é mesmo poeta.

Recorro a um excerto de uma matéria publicada no Jornal de Letras, a vinte e quatro de setembro de dois mil e oito, sob o título de “O poeta na cidade, hoje”, da autoria de Eduardo Lourenço, onde este, a dado passo, escreve o seguinte, algo que, julgo eu, servirá para justificar o que acima mencionei:

“(...) os que sob a superfície lisa das águas escutam um rumor, um apelo que, literalmente falando, os não deixa viver, ouvindo o já ouvido, mesmo o mais belo e sublime, e buscam por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo, e que não sossegam enquanto o não inventam e se perdem nele para se salvar. São eles que nós chamamos de poetas. São os que acrescentam a criação à criação e assim renovam o mundo.” (2)

António Rebordão Navarro enquadra-se neste possível esboço do que é, ou pode ser, o poeta. O que busca “por sua conta a melodia única que lhes explicará o tempo que é o seu próprio tempo”, o que acrescenta “a criação à criação e assim” renova “o mundo”.

E este seu livro: “27 poemas”, sob a capa de uma pretensa aridez anunciada pelo próprio título, corrobora essa afirmação. Mas entremos no livro, neste “27 poemas”.

Este volume sugere-nos, pela natureza do título, uma mera compilação de poemas. Algo sem um fio condutor, desprovido de uma ligação interna.

No entanto, ao abri-lo, deparamo-nos com um poema cujo título poderá ser demolidor dessa ideia. Lê-se: “Profissão de fé”; ou seja: uma declaração pública daquilo em que se crê; e onde o poeta nos oferta esta quintilha, que é, na minha opinião, a parcela mais relevante e que passo a citar:

“Eu sou, minha senhora, a sua sombra.
Estou consigo quando você se esvai,
me castiga ou compõe
com religiosos dedos a gravata
sob o colarinho amarrotado.” (3)

É, na minha leitura, o primado da vida. A morte, que encontro nesta senhora, perde o seu estatuto perante o homem, perante aquele homem que, tomando consciência plena desta, agarra com ambas as mãos o leme do seu próprio caminho. Ele é a sombra da morte, não o contrário.

Esta firme convicção em o poeta poder tomar como que posse da morte, ou seja: do medo, do medo último, para ganhar os argumentos essenciais para a plena fruição da vida.

Naturalmente que o amor, melhor: a relação amorosa; é um desses possíveis argumentos. Aliás, ele está bem presente na sensualidade patente no poema “Movimento marítimo”, embora nunca perdendo de vista que é, tal como se refere em “Declinação do amor”:

“Por ele [ou seja: o amor] nos vamos destruindo.
Corroídas, as palavras
sobem ao céu da boca, crucificam-se,
sabem a língua morta.” (4)

Em suma, leio aqui que o amor não se faz. Muito provavelmente nem se construirá. O amor é. E só desta forma ele deixará de ser um possível argumento, mas um dos mais relevantes argumentos para a tal plena fruição da vida.

Falei desta convicção, a de tomar como que posse da morte. Ela conduz à possibilidade da fundação do templo, um espaço interior, íntimo, a que António Rebordão Navarro, naturalmente esta é a minha leitura, denominará posteriormente de casa.

No primeiro de dois poemas intitulados: “A fundação do templo”; observamos um interessante jogo de antíteses. Como exemplo:

“Você pode ser lúcida e ser louca” (5)

ou

“Você é uma lâmina,
ou um lago deixando-se sulcar” (6)

No fundo, estamos aqui, apesar de ser o templo interior, íntimo, a observar, neste jogo de verso e reverso, uma imagem do mundo, do real e do mundo outro que só a boa poesia pode criar. Embora este último seja um mundo outro, diverso, não está dissociado do real. O mundo é um eterno jogo de opostos.

E é por isto que há pouco afirmei que o templo passa a ser casa. Embora lugar de refúgio, de protecção, mas também de afecto, é ponto de partida e de chegada, é espaço de reflexão que, permitam-me a expressão, só o nosso próprio cantinho propicia e potencia.

De novo, as convicções. No primeiro poema deste tríptico intitulado: “As casas (...)”, Rebordão Navarro lega-nos isto, e cito:

“Fizemo-nos as pedras do edifício” (7)

Embora exista a passagem de templo, espaço sagrado, de veneração, para casa, espaço habitado, logo mais ligado à vida, ao quotidiano, eles, templo e casa, persistem no poeta, no construtor do poema. Melhor: o poeta é templo e casa. São a mesma entidade, o mesmo ser.

E é aqui, neste ponto, nesta junção entre o interior e o exterior, não só do mundo real, mas do mundo outro que a poesia revela, que chegamos ao epicentro deste livro.

Um simples cálculo matemático seria suficiente para o determinar, mas, perdoem-me os matemáticos, ler é muito mais divertido.

Ora bem, se são vinte e sete, o décimo quarto está à mesma distância do primeiro e do último.

Esse poema, o tal epicentro do livro, tem o nome de: “Concerto”; um nome que por si só já nos diz muito. É um poema singular neste volume, marca a diferença relativamente aos outros vinte e seis enformadores da obra. É o único dedicado, neste caso a Silvestre Fonseca e é, também, o único datado, desta feita consta: Vila Viçosa / 09-06-1987.

Para além de nos mencionar o óbvio, mas algo só adquire essa característica porque alguém o disse, ou seja: todo o poema é dedicado a algo ou a alguém e todo o poema nasce ou ganha a forma com que se apresenta ao outro, ao leitor, num determinado lugar e numa determinada data, refere-nos da importância da musicalidade no poema.

E esta musicalidade, que as palavras também constróem, para além da sua fundamental carga racional, desperta no outro, no leitor, o lado emotivo.

Como refere Fernando Pessoa, num texto sobre estética, e passo a citar:

“um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é uma existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção.” (8)

Talvez por isso, digamos assim, a segunda parte do livro se inicie com o poema “Cor-cordis”, o espaço referencial do coração, aqui, pelo menos assim o leio, como espaço onde a memória habita, a tal recordação referida por Fernando Pessoa. E este reavivar da memória é bem patente pelo engenhoso processo anafórico presente neste poema.

Aliás, a importância da memória na construção da obra é sublinhada pelo poeta quando este afirma no poema: “As águas”, o seguinte:

“Em vão nada se faz, nada se queima.
Projectam-se partos na memória.” (9)

Em jeito de resumo, diria que “27 poemas” é uma viagem. Uma viagem com amor e morte, que são os grandes temas da poesia, mas onde a própria poesia é, de facto, o tema. Essa enigmática figura que nos surge amiúde referida sob o pronome “você”. Mas toda esta viagem é-nos servida com diversas referências culturais e com o registo crítico e irónico que, quase direi, são a imagem de marca do autor.

Para concluir, porque o poeta não permitiu ao amante viver até ao fim do filme, deixando essa revelação exactamente no dístico derradeiro, afirmando a sua morte na coxia, permitam-me que descubra um porto. Por isso, deixo-vos um poema, um poema que tem como título um espaço bem concreto: “Porto 1”:

“Um dia, a palavra fez-se carne.
Ou sucedeu justamente o contrário?” (10)


NOTAS:

(1) NAVARRO, António Rebordão – 27 Poemas, Edium Editores, S. Mamede de Infesta, 2.ª edição, 2008, P. 24.
(2) LOURENÇO, Eduardo – O poeta na cidade, hoje. in Jornal de Letras. 24 de Setembro de 2008, P. 39.
(3) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 12.
(4) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 19.
(5) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 20.
(6) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 20.
(7) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 26.
(8) PESSOA, Fernando – Obras Completas III, RBA, 2006, P. 199.
(9) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 39.
(10) NAVARRO, António Rebordão – Ob. Cit. P. 35.

Criado em: 2/12/2013 10:53
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "Ensaios de Ficção", de Renata Pereira Correia
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Ensaios de Ficção", de Renata Pereira Correia
(Publicado a 22.11.2013, em www.euxz.blogspot.com)


Quando o músico grego Vangelis compôs a banda sonora para o filme de 1982, de Ridley Scott, “Blade Runner” extraiu uma frase desse filme que considero capaz de definir o livro que aqui se apresenta.

Holden, interpretado por Morgan Paull, diz algo que em português significa sensivelmente o seguinte:

“é um teste desenvolvido para provocar uma resposta emocional”.(1)

Se repararmos no título, de facto ensaiar é testar, é pôr à prova, é verificar a possibilidade de algo ocorrer. No fundo, é limar as arestas para que algo aconteça de uma forma pré-concebida, pré-idealizada.

Mas aquilo que se testa aqui, ou que se ajusta, é a ficção, o mesmo é dizer de que se trata da outra face da realidade.

Há portanto, pela autora, a necessidade de, por palavras, desenvolver uma série de experimentações com o intuito de criar a condição ficcional.

No entanto, quanto mais se afasta do eu ao encontro do outro, mais o outro do eu se aproxima. Como se estes ensaios nos trouxessem a impossibilidade do afastamento da autora, ela mesma, da sua própria escrita.

Renata Pereira Correia é a matriz essencial do que cada palavra respira. O eu vai-se tornando cada vez mais nítido, confirmando o título, mas pela negação.

E a questão que se coloca é basicamente a seguinte: a percepção da ficção pela máscara, isto é, o outro, o eu-outro que enfrenta o mundo, é ponto de partida?, ou será o eu aquele que consagra a matéria para a criação ulterior dessa mesma percepção? Em síntese: o que distingue o eu que sou do eu-outro e do eu que afirma escrevendo no próprio instante da génese da escrita? Renata Pereira Correia diz-nos isto:

“para quê julgar o visível, se é no invisível que se encontra toda a essência”(2)

ou seja: por detrás do ficcional, o real e é nele que se deve investir, mesmo quando esse real não é mais do que a nossa forma de interpretar o real, uma ficção.

Por outras palavras, há que procurar a ideia essencial que se oculta por detrás da aparência com que explicamos o mundo isto porque é aí, nessa demanda que, como refere a autora:

“No início desta alvorada,
começa-se um novo percurso,
colhe-se frutos.”(3)

E aqui, neste pequeno exemplo, repare-se que a autora nos confere a ideia de génese, de ponto de partida por quatro vezes (início, alvorada, começa-se e novo) para que se possa possuir o objectivo, isto é: colher o fruto.

Trata-se portanto numa espécie de acto de escultura em que o outro se vai diluindo no eu através da sua própria subtracção, retirando quase diria pó a pó para chegar-se ao ponto mais radical, afirmando:

“A busca é o sonho
A procura é o delírio” (4)

Mas o mundo existe, estamos no mundo, é algo que os sentidos nos valida a cada instante.

Renata Pereira Correia dele não se dissocia, antes pelo contrário: interpela, interage, valoriza o que sente ser mais relevante, insurge-se contra a indiferença, mas sempre com um, como menciona a cantiga de Sérgio Godinho:

“brilhozinho nos olhos”.(5)

Sobre estes últimos tópicos, leia-se no poema: “Ninguém vive só”, o seguinte:

“As águas do infinito oceano correm juntas
As lágrimas rolam acompanhadas
A amizade não tem necessidade de grandes discursos
Somente os nossos actos bastam para provar o quanto ela é importante”(6)

Em resumo, apesar da indiferença e do individualismo, quantas vezes exacerbados, marcarem cada vez mais a agenda do dia, espero que se mantenha sempre essa esperança, o sonho de que é possível mudar o que nos rodeia, mesmo que, somente, seja em ensaios mesmo que num plano meramente ficcional.

NOTAS:
(1) in "Interrogation of Leon". http://www.devo.com/bladerunner/sector/2/interrogation.html (último acesso a 20.10.2013)
(2) CORREIA, Renata Pereira - "Ensaios de Ficção". Temas Originais. Coimbra. P. 22
(3) CORREIA, Renata Pereira - Ob. Cit.. P. 37
(4) CORREIA, Renata Pereira - Ob. Cit.. P. 16
(5) GODINHO, Sérgio - in "Lirycs.Time". http://www.lyricstime.com/s-rgio-godi ... nho-nos-olhos-lyrics.html (último acesso a 20.10.2013)
(6) CORREIA, Renata Pereira - Ob. Cit.. P. 27

Criado em: 26/11/2013 8:37
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Drummond: poeta do enlace
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Camarada Felipe Mendonça,
É deste género de trabalhos que nos fazem sempre falta. Bem-hajas por o partilhares connosco.
Um abraço
Xavier Zarco

Criado em: 15/11/2013 12:06
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "Ao Povo do Mundo", de Fernando Morais
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Ao Povo do Mundo", de Fernando Morais
(publicado a 14.11.2013, em www.euxz.blogspot.com)


Em 2010, sob chancela da editora conimbricense Temas Originais, surge a obra “Ao Povo do Mundo”, da autoria de Fernando Morais, poeta e tradutor, com vasta obra editada.

Este livro abre com chave de ouro. Um verso, aparentemente simples, aliás um heptassílabo, bem ao jeito do que toca a alma do povo, o que trabalha e canta o trabalho, o que sofre e canta o sofrimento, o que sorri e canta o sorriso.

Diz o poeta nesse verso inaugural, e cito:

“Hoje estou aberto ao mundo.” (1)

Apetece-me dizer o sinal ortográfico, ponto final.

De facto, este volume traz-nos, não direi a tal catarse anunciada em prefácio assinado por João Arezes, que a vida do homem que está por trás do autor não conheço para além da sinopse que consta na contracapa, mas sinto que este livro é uma janela, um miradouro onde habita um sonho.

Como escreveu John Lennon:

“Tu podes dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia te juntes a nós
E o mundo será só um” (2)

Este “Ao Povo do Mundo” apresenta-se, pelo menos a mim, como a tal janela, uma verdadeira janela onde o que diz e o que toma posse do que se diz, trocam amiúde a posição de observação do mundo, possibilidade essa que só a autêntica poesia, como meio de comunicação do conhecimento, capaz de nos aproximar da real face de todas as coisas, pode, de facto, efectuar.

Há, portanto, neste poemário osmose, mas, também, simbiose. Comunhão plena de princípios, mas, sobretudo, quase diria de enxadas com que se vão cavando a terra para o repouso da semente e para a colheita do fruto.

O poeta e o leitor viajam por entre olhares, não olhando, mas vendo o que há a ver. Como exemplo, três instantes onde esse olhar se demora: d’”A Terceira Idade” onde, e cito:

“Um velho está curvado
sua cabeça pende para o chão
e quando caminha, os seus ossos rangem;” (3)

passando pelo único título não maiusculado deste livro, e que significado a este atributo se pode dar, “Aldeias que já não há / mentalidades que ainda temos...”, onde se pode ler:

“Já não há aldeias destas
onde quem manda é mandado
e quem sofre leva um prémio
pelos sábados de sol e sombra” (4)

até à viagem, ela própria, melhor: “Viagens” onde, refere o poeta, ou será o leitor?:

“não me perdi nem me achei
(...)
sentei-me lá no alto
satisfeito do que vi” (5)

concluindo:

“(...) só vi montes...” (6)

Esta é a perfeita definição do que é palpável, do horizonte, mas, e talvez sobretudo, do que há para além do horizonte, aquilo que está para lá do mero observável, repito:

“sentei-me lá no alto
satisfeito do que vi”. (7)

Trata-se, a meu ver, de um tratado este “Ao Povo do Mundo”, que nasce exactamente sob epígrafe de Neruda, aquele que escrevia para o povo, mesmo que este não o entendesse, para nos desvelar o mundo íntimo e exterior, consoante o ensejo de quem o desbravar.

Talvez viagem de vida, a própria, mas essencialmente a construção de uma visão do mundo que, tal como diz o poeta, e é fundamental seguir esta lição:

“Quando os meus pés estão magoados
eu desço à realidade” (8)

porque, tal como afirma Fernando Morais,

“gosto tanto dos meus pés, cansados, quanto gosto do real” (9)

Escuto aqui Antonio Machado com o seu conhecido verso

“se hace camino al andar”. (10)

E esta obra faz-se exactamente assim: caminhando e observando cada metáfora como única.

NOTAS:
(1) MORAIS, Fernando - Ao Povo do Mundo, Temas Originais. Coimbra. 2010. P. 11.
(2) LENNON, John - Canções (1968-1980), Centelha. Coimbra. P. 65.
(3) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 20.
(4) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 29.
(5) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 73.
(6) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 73.
(7) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 73.
(8) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 51.
(9) MORAIS, Fernando - Ob. Cit. P. 51.
(10) MACHADO, Antonio - In "Poemas del alma", http://www.poemas-del-alma.com/antoni ... inante-no-hay-caminho.htm (último acesso a 27.09.2013).

Criado em: 15/11/2013 9:16
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "Aprendiz de Poeta", de Emanuel Lomelino
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Aprendiz de Poeta", de Emanuel Lomelino
(Publicado a 01.11.2013, em www.euxz.blogspot.com)



Seguindo a lição utilizada no seu primeiro livro, o poema iniciador da obra titula-a, isto é: ao “Amador do Verso”, onde se lê, e cito:

“a poesia não traio, sempre lhe fui fiel
palavra de aprendiz de poeta”(1)

curiosa esta referência, aprendiz de poeta, adiante,

sucede este “Aprendiz de Poeta”, obra editada, tal como a anterior, em 2010, pela Temas Originais, que, considero um pulo bem acentuado no que o Emanuel Lomelino faz chegar ao leitor sob a forma do livro. São dois, à data em que escrevo, bem sei, mas é, na minha opinião, algo a considerar.

Digo-o porque, no seu primeiro livro, notava-se já a verdadeira semente de toda a escritura, isto é: a leitura; mas, também, já era notória uma demanda de um registro próprio.

Existia o amador, o que ama a coisa, mas que desta não se afastava o suficiente para colher a essência da sua própria respiração. O acto amatório muitas vezes provoca uma proximidade que, quase diria, sufoca, mesmo que essa sensação possa eventualmente ser até agradável.

No entanto, nesta sua nova obra, “Aprendiz de Poeta”, há uma novidade, um registro, de facto, próprio, autêntico, verdadeiro, porque do próprio autor, que sabe, porque desta toma, não sensível, mas conscientemente, que é a leitura a geradora da obra a ser.

Desta forma, não será de admirar que continue a escutar, como mero exemplo, António Franco Alexandre, sobretudo o de “Moradas”, de uma forma mais abrangente, ou de Ruy Belo pela forma coloquial com que amiúde contamina o seu fazer poético.

Mas não encontro aqui o que afirma o próprio poeta, e cito:

“poeta imaturo”(2);

a não ser que este imaturo signifique, e aí concordo, como aquele que sempre encontra na coisa o catalisador do próprio espanto e, por isso, se sente sempre perante a novidade, e, assim, matura constantemente essa mesma coisa com o intuito de obter desta a maior valoração possível.

Aí ambos, melhor, todos os que escrevem estão, como se soía dizer, no mesmo barco, navegando, tal como afirma Emanuel Lomelino,

“um rio
(...) agarrado às suas crinas”(3),

imagem esta de força vital porque nos traz uma espécie de serena liberdade.

Um detalhe relevante, que já era também vislumbrável na sua primeira obra, é, tal como indiciam os ecos poéticos acima referidos, sobretudo Ruy Belo, o alongar do verso, quase sempre superior ao decassílabo.

Neste “Aprendiz de Poeta” há a aproximação ao apuro técnico de construção deste género de mesura vérsica, onde a cesura se encontra cada vez mais no local devido, ou não fosse aprendiz, aquele que inicia o processo de recolha e interiorização dos rudimentos do seu ofício, no âmago do que escreve, melhor do que diz.

Trata-se portanto, na minha opinião, já não só da tal procura de registro pessoal, que antes referi, mas de uma demanda para que esse mesmo registro seja cada vez mais construído de forma a que chegue ao outro com uma maior eficácia ou, como refere o poeta, que nisto o poeta é que sabe, e pode clarificar:

“Escrevo por não poder falar
Todas as palavras que quero” (4)

Isto é, tendo consciência de que o acto poético é essencialmente fala, voz, e sobretudo canto, assume-se aqui como o tal aprendiz.

É, sem dúvida, um título que assenta, tal como refere o povo, como uma luva.

Numa abordagem ligeira a esta obra, muito provavelmente, dir-se-á: essencialmente lírica. Se é um facto que o Eu está, quase direi, omnipresente, também é verdade que esse Eu, por vezes, muitas vezes, se vê, como se se projectasse no mundo e representasse um outro papel, ou, mais concretamente, um papel outro, um papel produzido pela imaginação, ou seja, transfigurando o Eu lírico num Tu dramático, que leva o poeta a dizer:

“Por vezes nem eu me reconheço
(...)
Afasto-me do mundo conhecido”(5)

Mas a questão fulcral é a seguinte: que papel procura desempenhar o aprendiz, por que demanda entre palavras fundadas no Eu, mas que é o Eu Outro que se revela em cada verso?

Bom, para que não seja suspeito, citarei Vitorino Nemésio quando este escreve:

“Como em toda a actividade, é difícil surpreender exactamente o grau de expressão em que a categoria do poético desfalece ou está ausente sem que desapareçam os requisitos formais da arte poética em acção. Sobre o que define o poético, frente ao metafísico, estamos todavia mais seguros. Se o pensamento filosófico apreende a realidade na relação do juízo, o que se possa chamar de pensamento poético indica-a ou mostra-a pela mediação de uma realidade segunda, substitutiva ou simbólica, que a razão não traduz absolutamente nos seus termos, mas que verbalmente é dada com a plenitude da intuição.” (6)

É neste plano que leio esta obra e, sobretudo, o futuro da obra do Emanuel Lomelino. Ou não fosse, e cito o poeta:

“A poesia
(...)
A minha tábua de salvação”(7)

E que outra salvação há senão a da reconstrução do nosso próprio mundo, desta feita reconstruída pela via, tal como alude Nemésio, segunda, substitutiva ou simbólica, tal como considero ser regida a escrita de Emanuel Lomelino, antes, agora e sempre, amador do verso, e aprendiz, porque peregrino pelos caminhos da palavra, da poesia.


NOTAS:
(1) LOMELINO, Emanuel - "Amador do Verso", Temas Originais, Coimbra, 2010. P. 7
(2) LOMELINO, Emanuel - "Aprendiz de Poeta", Temas Originais, Coimbra, 2010. P. 9
(3) LOMELINO, Emanuel - Ob. Cit. P. 9
(4) LOMELINO, Emanuel - Ob. Cit. P. 40
(5) LOMELINO, Emanuel - Ob. Cit. P. 66
(6) NEMÉSIO, Vitorino - Poesia Vol. I - 1916-1940, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 2006. P. 120
(7) LOMELINO, Emanuel - Ob. Cit. P. 59

Criado em: 11/11/2013 7:14
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "Amar em Chão de Mar", de Dalila Moura Baião
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Amar em Chão de Mar", de Dalila Moura Baião.
(Publicado a 7 de Novembro de 2013, em www.euxz.blogspot.com)

Um dos grandes críticos e analistas do fenómeno literário, sobretudo da Poesia, na minha perspectiva, Ezra Pound, num dos seus mais conhecidos ensaios, escreveu sobre a arte poética o seguinte, e cito:

“A função mais sublime da arte consiste em preencher a mente com uma profusão de sons e imagens que ordenem a vida intelectual.”(1)

Se a esta lição adicionarmos o que refere T. S. Eliot, quando alude ao jovens autores do seu tempo, e cito:

“demonstram ter aberto um livro de Withman: perceberam a disposição dos versos sobre a página impressa, mas não encontro explicação sobre o que os levou a escrever a maior parte dos poemas em «versos livres» (possivelmente o boato de que o verso havia sido libertado).”(2)

É nesta confluência que situo o que esta obra, “Amar em Chão de Mar”, tem como base para a sua escritura. Nesta, temos a tal profusão de sons, de imagens, mas também temos versos livres, melhor: versos livres, mas na medida exacta.

Embora não exista um padrão ao nível da mesura do verso em si, há, de facto, um padrão ao nível da construção do corpo poético: uma boa parcela dos poemas que enformam esta obra têm como base uma padronização hexamétrica ou heptamétrica.

Tal é fundamental para que o outro, aquele que é não só o destinatário do objecto de arte, mas o verdadeiro detentor desse mesmo objecto, pelo auxílio da componente emotiva, que só a musicalidade, matriz de qualquer poema, desperta, possa aceder, mas aceder de facto ao que, no fundo, lhe pertence.

A poetisa trabalha o seu ofício para que o fruidor da obra possa assistir, e sentir, citando a autora:

“O silêncio encrespado da palavra a brotar”(3)

Repare-se que são dois hexâmetros que constroem este verso de treze sílabas.

E é no silêncio que a palavra brota, mas também é para o silêncio que a palavra, em poema, pretende regressar ou não fossem palavras que, como escreve Dalila,

“sabem amar em chão de mar”(4).

Para além da forma, há a voz, a voz que diz. Sendo certo que o que o poeta diz, qualquer um, pouco me interessa, porque o que me interessa é aquilo que o poeta me diz. E essa é a visão que, também aqui, leio, passo a citar:

“Seres-te assim, o viajante
Que em trépidas caminhadas
Me procura...

(...)

Seres o poema, onde te li
Palavra breve
Sonhada em ti!”(5)

E esta palavra, sonhada em mim, diz-me de afectos. Creio ser essa a quase diria condição essencial para a feitura não só deste seu livro, mas também do seu anterior, “Varandas de Luar”, ou não fosse a arte em si:

“Poesia ancorada no meu coração”(6)

E este é o verdadeiro porto, e estaleiro, para a partida, e construção, do poema. Tal visão não nos é dada de forma fácil, antes pelo contrário. Entra-se na obra e temos um aparente isomorfismo, onze poemas que nos sugerem o formalismo do soneto. Há, no fundo, uma aparente ordem, mas essa ordem vem de onde?, nasce como?

A resposta surge-nos no segundo ciclo, o mais longo do livro, isto é, do caos, também aparente, em formas, ritmos, temas variegados, mas que se interligam como se fossem fotografias de uma vida desordenadas, impressões de instantes.

E a resposta é esta: há que descer até aos alicerces da casa, o terceiro ciclo, para que a poetisa me diga do nascer, da génese da obra.

E que signo mais forte do nascer que a palavra mãe? E que signo mais forte do afecto que a palavra mãe? Que signo mais forte para iniciar a reconstrução, a colocação exacta das peças do puzzle que fomos coleccionando, agora descobertos em retalhos de ternura para que a manta se faça e nos ordene, tal como referia Pound, a vida intelectual.

NOTAS:
(1) POUND, Ezra - "Ensaios", Pergaminho, Lisboa, 1994. P. 46
(2) ELLIOT, T.S. - "Ezra Pound", in POUND, Ezra - "Ensaios", Pergaminho, Lisboa, 1994. P. 26
(3) BAIÃO, Dalila Moura - "Amar em Chão de Mar", Temas Originais, Coimbra, 2010. P. 59
(4) BAIÃO, Dalila Moura - Ob. Cit.. P. 118
(5) BAIÃO, Dalila Moura - Ob. Cit.. P. 56-57
(6) BAIÃO, Dalila Moura - Ob. Cit.. P. 88

Criado em: 11/11/2013 7:05
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Sobre "Dias Incompletos", de Ana Wiesenberger
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Camarada Felipe Mendonça,
É um dos meus hábitos escrever sobre o que vou lendo (desta feita, um dos livros que apresentei).
Grato pela leitura e comentário.
Um abraço
Xavier Zarco

Criado em: 11/11/2013 7:04
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "Dias Incompletos", de Ana Wiesenberger
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Dias Incompletos", de Ana Wiesenberger.
(Publicado a 26.10.2013, em www.euxz.blogspot.com)


No ano de 2011, surgiu “Dias Incompletos”, da autoria de Ana Wiesenberger, poetisa que, se as minhas informações estão actualizadas, à data, publicou, contando com o mencionado, dois volumes de poesia, tendo o segundo por título “Idades”.

Em “Dias Incompletos”, a autora indicia-nos de como soube escutar as coisas que a circundam. Não passou indiferente ao real, transportando-o para dentro do próprio poema, como se o olhar, ele próprio, fosse a mão que escreveu.

No entanto, e apesar da quase direi crueza que a obra parece apresentar, tal conclusão é apressada, só possível, na minha opinião, se se passar pelo livro como se passa amiúde pela vida: sem vontade de ter tempo; sem capacidade de olhar para além do que a paisagem propõe.

Ana Wiesenberger propõe-nos exactamente isso: diz-nos do reflexo no vidro da janela, mas como que nos convida a abrir essa mesma janela e meditarmos sobre o que há para além.

Aproxima-nos do rosto através da amostragem da máscara, daquela com que nós enfrentamos os nossos afazeres quotidianos; essa máscara que, sentindo-a necessária, sempre questionamos da validade dessa mesma sensação.

Talvez exista por aqui, como refere Agostinho da Silva, embora a conclusão que este filósofo português tira seja, a meu ver, perigosa,

“um suplemento de ócio que, excelente em si próprio, porque nos aproxima exactamente daquele contemplar dos lírios e das aves que deve ser nosso ideal”. (1)

E este suplemento, utilizando a palavra do pensador, talvez tenha a capacidade de abrir a porta à possibilidade de enfrentar o mundo com o próprio rosto.

Lê-se logo a abrir o poemário, no poema [Há dias], o seguinte:

“Há dias
Em que não compreendemos
Porque temos de aceitar
Cúmplices
A tortura das trivialidades
A que estamos constantemente expostos” (2)

Depois, o questionar, o procurar a tal necessidade da máscara, concluindo o dito poema com uma estrofe que considero lapidar:

“Há dias
Em que deveríamos pôr de lado
A responsabilidade
O dever
A chatice
De existir” (3)

E o que vem a seguir é exactamente uma amostragem desse existir chato, desse existir longe do que sentimos ser o que somos. Desde:

“As pessoas
(...)
Que esqueceram os sentidos,
Mas estão convencidos
Que vêem,
Que sentem nos dedos e nas glândulas
O pulsar da vida”(4)

Puro engano, digo eu, porque tal como escreve Ana Wiesenberger, nós

“Sentamo-nos
Ajeitamo-nos nas cadeiras
E esperamos pelo fim.”(5)

Em suma: gastamos o tempo sem ter a sensação, já não digo consciência, de que se usufruiu desse mesmo tempo. E tanto assim é que a autora remata o poema intitulado “Urgência” dizendo isto:

“Os que franqueiam a porta de saída
De receitas na mão, vão contentes
Não por estarem sãos
Mas porque já estão livres
De esperar”(6)

É caso para dizer: será toda a vida, toda a nossa existência um tempo de espera? Será que reconfigurámos (ou desfigurámos) o nosso mundo como uma autêntica sala de espera?

Onde reside então a saída, a saída de facto, para esta nossa vidinha? Talvez exista aqui, neste espaço-outro que o poema é capaz de criar. No fundo, a poesia é partilha de conhecimento e eu, tal como a poetisa Ana Wiesenberger,

“Quero trazer a poesia para a rua
Vê-la descalça a pisar
A terra e as pedras
Sem medo de assumir
A sujidade dos dias

Quero poemas com cheiro e ruído”(7)

Porque, tomando agora meu este seu dístico, considero que ainda há tempo para ter tempo, ainda há tempo para viver, ainda há tempo para, quem sabe, convencer

“Deus
A tornar-se um poeta”(8)


NOTAS:
(1) SILVA, Agostinho da – in “Citador”. http://www.citador.pt/textos/a-face-o ... cnicos-agostinho-da-silva (último acesso a 15.10.2013). Com a seguinte referência bibliográfica: “Agostinho da Silva, in “Textos e Ensaios Filosóficos”
(2) WIESENBERGER, Ana – Dias Incompletos, Temas Originais, Coimbra, 2011, P. 7
(3) WIESENBERGER, Ana – Ob. Cit., P. 8
(4) WIESENBERGER, Ana – Ob. Cit., P. 10
(5) WIESENBERGER, Ana – Ob. Cit., P. 12
(6) WIESENBERGER, Ana – Ob. Cit., P. 14
(7) WIESENBERGER, Ana – Ob. Cit., P. 19
(8) WIESENBERGER, Ana – Ob. Cit., P. 20

Criado em: 31/10/2013 7:11
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Sobre "Onde os pássaros fazem silêncios", de Lita Lisboa
Membro de honra
Membro desde:
17/7/2008 21:41
Mensagens: 2207
Sobre "Onde os pássaros fazem silêncios", de Lita Lisboa
(publicado a 19.10.2013 em www.euxz.blogspot.com)


Numa altura em que o ofício poético, a edição de poesia, a divulgação, a própria distribuição digna desse nome deste género literário se constitui à maneira de um autêntico gueto, de uma espécie de raça de aves raras, e este rara sequer com o valor de precioso, mas de algo de estranho, alienígena, fora deste mundo dito, ou tido, como realidade, é bom, reconfortante encontrar alguém assim no nosso caminho.

E digo isto porque muito provavelmente, tal como escreveu António Rebordão Navarro no seu “27 Poemas”, se um destes dias a Lita Lisboa for apanhada na Rua da Sofia, na cidade de Coimbra, considerará também como insulto o termo: poetisa.

E porquê? Porque Lita Lisboa vai, procura, divulga, não só o que a ela mesmo diz respeito, mas a tudo, ou quase, que lhe vem parar às mãos. Não se submete a esse processo do sorriso, da palmadinha das costas, processos geralmente vazios de conteúdo, falsos, com o único propósito de ficar bem aquando da passagem da câmara fotográfica, antes promove valores de frontalidade, de, no fundo, amizade pura, bem como não se remete ao silêncio ou a ouvir uma única versão, antes procura saber do outro lado da questão.

Ou seja: antes de tudo, é pessoa. Depois, sim, depois tudo o que os seus passos souberam conquistar. Porque, e cito a poetisa:

“O clarão cega,
adormece os sentidos”. (1)

Estes valores, este estado de ser e estar, estavam bem patentes na sua primeira obra, mas esta supera-a, na medida em que há um criar de distância, um observar sobre, não um observar dentro, tal como ocorre em “Fragmentos de mim”. Permite-lhe ver o tal claramente visto camoneano. Nas suas palavras:

“vejo a noite chegar em pleno dia
A vida despida e sem graça,
E já nem o luar, tem poesia.” (2)

Repare-se nesta breve citação a inclusão gráfica de um sinal de pausa subvertendo a regra.

Tal reposicionamento no seu acto de escritura permite-lhe obter impressões não contaminadas pelo que a envolve, antes lhe dá a capacidade de melhor obter os ecos do mundo, depurá-los ao seu próprio ritmo e, assim, pelas necessárias palavras, construir o seu poema, no fundo,

“Apanhar
o sol que nos enxuga as lágrimas...” (3)

E só a distância nos permite retirar o excesso das impressões primeiras.

Quem escutar Lita Lisboa a ler um poema alheio verificará que o ritmo que imprime à leitura, não é de facto o ritmo gráfico ou ortográfico de quem o escreveu. A Lita cria pausas, adapta, obriga o poema a tornar-se de facto seu. Quem escreve sabe que só vale de facto a pena partilhar, porque de um acto de partilha se trata, o que se cria se, do outro lado, alguém tomar posse, isto é: não se tornar indiferente o que se produziu.

E estes factores tornam a sua cadência cada vez mais autónoma, mais própria, fruto da leitura, também da contaminação pelo outro, faz com que os seus poemas adquiram uma mais valia: a da autenticidade.

E é essa autenticidade que me cativa no que a Lita Lisboa escreve, melhor: ao que eu escuto quando a leio.

Se há por um lado, uma espécie de grito, de alerta, de chamada de atenção a esta nova forma de encarar o mundo, de estar com o outro, por outro há uma construção rítmica que nos diz da necessidade de ponderação. Raro é o poema onde se sente a necessidade de acelerar a leitura. Citando.

“Do esplendor da natureza,
colho tudo o que o olhar vê
e construo teias de trinados.” (4)

Lita Lisboa convida-nos através dos seus poemas para a ágora, coisa bem fora de moda nos dias monocórdicos que correm, para o debate franco, honesto, sem rodeios.

Há neste seu novo título uma busca de uma escritura mais cristalina, talvez a procura do traço que a sua outra vertente artística, a pintura, nos traz: aquele instante ofertado pela paisagem, aquela luz que desenha a silhueta, em suma: a sugestividade pelo real configurada naquele instante que nos coube em sorte viver.

Creio que a escrita lhe dá o tal sonho, o tal objectivo indiciado em título. Aquele que só quem desenha o voo é capaz de saber que o seu limite é para além do limite que lhe é imposto socialmente e tem a veleidade, sim, porque de veleidade, de ousadia se trata, e é capaz, não direi de tocar, que, tal como nos ensinou Antonio Machado, não há caminho, o caminho faz-se caminhando, mas de o sentir, de o saber próximo, provável e constantemente próximo, e isso é relevante: é sinal que há futuro.

“Onde os pássaros fazem silêncios” diz-nos exactamente dessa dimensão, do meramente humano, na medida em que o humano deve ter em conta um único valor: o valor do ser.

Para concluir: à poetisa direi somente isto, não há duas sem três, mas que o terceiro se mantenha fiel, fora das regras do cânone, mas dentro das regras da sua voz.


NOTAS:
(1) LISBOA, Lita - "Onde os pássaros fazem silêncios", Temas Originais, Coimbra, 2011. P. 25
(2) LISBOA, Lita - Ob. Cit., P. 24
(3) LISBOA, Lita - Ob. Cit., P. 52
(4) LISBOA, Lita - Ob. Cit., P. 42

Criado em: 21/10/2013 20:15
Transferir o post para outras aplicações Transferir



 Topo
« 1 2 3 (4) 5 6 7 ... 82 »




Links patrocinados