CANÇÃO DO PURGATÓRIO

Data 21/01/2010 02:32:31 | Tópico: Poemas

para cristóvão siano, meu amigo

"E temei o dia em que nenhuma
alma poderá advogar por outra,
nem lhe será admitida intercessão
alguma, nem lhe será aceita
compensação, nem ninguém será
socorrido!"

- Do Corão, 2ª Surata, 48


quando o anjo bom veio buscar minha mãe
e ela já não tinha nenhum sorriso nos lábios
- era só um rosto de cera
descobri que todos os mortos são iguais

morta como todos os mortos minha mãe
não reagiu à estrutura imposta pelo silêncio
só por isto acreditei no silêncio
na medida em que a morte dói
mas só nos pede silêncio

queria rir beber e fumar maconha na esquina
assim mais ou menos como eu fazia aos quinze anos
mas o anjo bom que veio buscar minha mãe
teve paciência para me avisar que eu já não tinha
mais quinze anos e o barco se toca conforme o rumo dos ventos
só que vivi sem aprender o rumo dos ventos

pedi ao anjo uma audiência com deus
mas deus estava dormindo e nem se deu conta
que o anjo bom havia levado minha mãe

(nunca é bom acordar o dono do mundo nessas horas
: é preciso que ocorra o desenlace - penso comigo -
para que se dê conta nessas horas)

quando o anjo bom veio buscar minha mãe
sei que ele se aproveitou da ausência ou do sono de deus
e eu para não lavar as mãos como pilatos
chorei minhas culpas e percebi que minha morte
ia junto com minha mãe
mas naquela hora reclamá-la seria impossível

______________________

júlio, 21-01-10


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=116151