
Antes que cheguem as cigarras
Data 22/02/2010 10:29:35 | Tópico: Contos
| Antes que cheguem as cigarras, haverei de partir... Não ouvirei o canto de acasalamento a ressoar pelo ar. Nem verei as crianças a caçá-las, nas mangueiras, no pomar. Pois antes disso, haverei de partir, como, um dia, você. Sem aviso, feito a neblina que, repentinamente, se desfaz. Nenhum indício de que pudesse voltar apenas o som das cigarras naquela tarde, como regessem já a sinfonia da saudade. Sentado no canto da sala, a espiar pela janela, nem percebi o tempo a fugir das minhas mãos. Vezes muitas, vi-a, caminhando pelo jardim, mas desaparecia por entre as folhagens, antes que pudesse segui-la, diluída em espaço e fumaça.
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Conheci-a, no mesmo dia em que ti perdi. Chegou de repente, adentrou meu peito, agigantou-se, tornou-se parte integrante do meu dia-a-dia. Lascivamente controla os meus gestos, orienta os meus atos. Sei que nunca estarei só. E essa certeza provoca prazer e agonia. O que fazer? Não há fugas, pois sempre me encontrará com os seus olhos ardentes, o largo sorriso estampado a me envolver. No início, aparecia vez ou outra, quando estava só, nas indagações de uma vida confusa e vazia. A intimidade se fez, sua presença é constante. Ontem mesmo, na quietude de um feriado de Finados, chegou bem cedo. Pra dizer a verdade, acho que passou a noite comigo. Não notei a sua presença, pois, embriagado, adormeci no sofá e apenas pela manhã abri os olhos. Estava ao meu lado. Sorriu-me, os lábios úmidos e atraentes. O difícil é admitir que, de uns tempos para cá, um sentimento novo de mim se apossou e que atribuo a um ciúme terrível e desenfreado. Quero-a só para mim, embora impossível. Outros esperam-na, talvez, assim como eu, remoendo-se em ciúme. Sempre será assim: transparente, vulgar e irresistível. Partiu, deixando um “até breve”. *********************************************
Chove torrencialmente e a enxurrada, mais parecendo rio, arrasta dispersos sonhos que a cidade não recolheu. Virá, certamente, com o odor da terra úmida e, feito ininterrupta goteira, há de martelar, horas a fio, a angústia escondida no vão de uma saudade incontrolável. Nada a fazer, senão esperar. A rotineira espera da minha amiga solidão.
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Na cozinha, os talheres se amontoam, na evidência clara do abandono. Pelos corredores, sapatos, roupas, propositadamente espalhados à espera de antigos arranjos. Cheguei, um dia, a imaginar que você estivesse concluíndo um ciclo, que sairías do solo, subirias pelo tronco de qualquer árvore e anunciarias, com suave canto, a tua volta. Mas que esta insânia não deforme a realidade. À minha frente, à mesa, os comprimidos se espalham a me desafiarem, perdidos em meio a fotos, fatos e cartas... O que busco, nessas tardes, em que, debruçado sobre o passado, reviro os meus guardados...? Pelas frestas das horas, réstias de luminosidade a se dispersarem pela escura sala. Reminiscências, saudades... do que vivem os meus guardados? Habito outras tardes, sou parte de metades. O que busco em meus guardados, senão a luz de outras tardes? Senão o canto de outras cigarras? Há tempos, por aqui o carteiro não tem passado. Nenhuma notícia, novidades. Talvez no céu carteiros não haja...
do livro "Não acordem os pássaros"
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