Contos : 

Antes que cheguem as cigarras

 
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Antes que cheguem as cigarras, haverei de partir...
Não ouvirei o canto de acasalamento a ressoar pelo ar. Nem verei as crianças a caçá-las, nas mangueiras, no pomar. Pois antes disso, haverei de partir, como, um dia, você. Sem aviso, feito a neblina que, repentinamente, se desfaz. Nenhum indício de que pudesse voltar apenas o som das cigarras naquela tarde, como regessem já a sinfonia da saudade.
Sentado no canto da sala, a espiar pela janela, nem percebi o tempo a fugir das minhas mãos.
Vezes muitas, vi-a, caminhando pelo jardim, mas desaparecia por entre as folhagens, antes que pudesse segui-la, diluída em espaço e fumaça.

****************************************** *

Conheci-a, no mesmo dia em que ti perdi. Chegou de repente, adentrou meu peito, agigantou-se, tornou-se parte integrante do meu dia-a-dia.
Lascivamente controla os meus gestos, orienta os meus atos. Sei que nunca estarei só. E essa certeza provoca prazer e agonia. O que fazer? Não há fugas, pois sempre me encontrará com os seus olhos ardentes, o largo sorriso estampado a me envolver.
No início, aparecia vez ou outra, quando estava só, nas indagações de uma vida confusa e vazia. A intimidade se fez, sua presença é constante.
Ontem mesmo, na quietude de um feriado de Finados, chegou bem cedo. Pra dizer a verdade, acho que passou a noite comigo. Não notei a sua presença, pois, embriagado, adormeci no sofá e apenas pela manhã abri os olhos.
Estava ao meu lado. Sorriu-me, os lábios úmidos e atraentes.
O difícil é admitir que, de uns tempos para cá, um sentimento novo de mim se apossou e que atribuo a um ciúme terrível e desenfreado. Quero-a só para mim, embora impossível. Outros esperam-na, talvez, assim como eu, remoendo-se em ciúme.
Sempre será assim: transparente, vulgar e irresistível.
Partiu, deixando um “até breve”.

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Chove torrencialmente e a enxurrada, mais parecendo rio, arrasta dispersos sonhos que a cidade não recolheu.
Virá, certamente, com o odor da terra úmida e, feito ininterrupta goteira, há de martelar, horas a fio, a angústia escondida no vão de uma saudade incontrolável.
Nada a fazer, senão esperar. A rotineira espera da minha amiga solidão.

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Na cozinha, os talheres se amontoam, na evidência clara do abandono. Pelos corredores, sapatos, roupas, propositadamente espalhados à espera de antigos arranjos.
Cheguei, um dia, a imaginar que você estivesse concluíndo um ciclo, que sairías do solo, subirias pelo tronco de qualquer árvore e anunciarias, com suave canto, a tua volta.
Mas que esta insânia não deforme a realidade.
À minha frente, à mesa, os comprimidos se espalham a me desafiarem, perdidos em meio a fotos, fatos e cartas...
O que busco, nessas tardes, em que, debruçado sobre o passado, reviro os meus guardados...?
Pelas frestas das horas, réstias de luminosidade a se dispersarem pela escura sala. Reminiscências, saudades... do que vivem os meus guardados?
Habito outras tardes, sou parte de metades.
O que busco em meus guardados, senão a luz de outras tardes?
Senão o canto de outras cigarras?
Há tempos, por aqui o carteiro não tem passado.
Nenhuma notícia, novidades.
Talvez no céu carteiros não haja...





do livro "Não acordem os pássaros"
 
Autor
Massari
Autor
 
Texto
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Enviado por Tópico
ÔNIX
Publicado: 22/02/2010 13:13  Atualizado: 22/02/2010 15:10
Membro de honra
Usuário desde: 08/09/2009
Localidade: Lisboa
Mensagens: 2683
 Re: Antes que cheguem as cigarras
...a enxurrada, mais parecendo rio, arrasta dispersos sonhos que a cidade não recolheu.
Virá, certamente, com o odor da terra úmida e, feito ininterrupta goteira, há de martelar, horas a fio, a angústia escondida no vão de uma saudade incontrolável.


Simplesmente belo e profundo este texto, assim como o livro o será também Massari

Habito outras tardes, sou parte de metades.
O que busco em meus guardados, senão a luz de outras tardes?


Há cantos que vem de longe e o seu Massari, é um canto profundo, quente, que vem das entranhas da terra


Adorei ler

Beijos


Matilde D'nix


Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 22/02/2010 14:25  Atualizado: 22/02/2010 14:25
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Antes que cheguem as cigarras
Magníficos momentos de leitura. Um bocadinho deles´, de cada um deles, agarrou-se a mim, irremediavelmente... seria a saudade, seria o som das cigarras, seria a chuva a chorar, seria a luz das tardes em que também guardo memórias...?

Beijo.


Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 22/02/2010 14:29  Atualizado: 22/02/2010 14:29
Colaborador
Usuário desde: 19/10/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 3731
 Re: Antes que cheguem as cigarrasp/Massari
Li, frui e quedei-me neste buscar de coisas, de memórias.

sem mais...aplaudo de pé.

bj
Eduarda


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/02/2010 15:21  Atualizado: 22/02/2010 15:21
 Re: Antes que cheguem as cigarras
Gostei destes pedaços.
Certamente, o todo será belo.
Fizeste-me lembrar os textos da Margarete.
Expões pedaços de vida, expões olhares sublimes sobre coisas banais. E é isso que faz a diferença: do mau para o bom escritor.


Abraço


Enviado por Tópico
ROMMA
Publicado: 22/02/2010 20:40  Atualizado: 22/02/2010 20:40
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade:
Mensagens: 2460
 Re: Antes que cheguem as cigarras
pela escrita que te conheço surpreendi-me nesta leitura mais longa e deliciosamente com pequenas histórias de grandes sentires. vi a saudade como ponte forte e apreciei demais a cigarra e o medo que ela volte, mas ao mesmo tempo o querer fugir porque é certo que o tempo virá a recordar-te e a saudade poder doer mais ainda... lindo muito lindo todo o encadear das palavras uma simplicidade de grande valor poético. também o desenvolvimento dessa recordação viva que faz pensar que está presente fisicamente... e as cigarras que vão voltar para cantar também serão outras... dá a ideia de um desejo de continuar e enquanto isso aguarda noticias do céu. enormidade de afectos! beijinho Massari adorei ler esta forma tão suave e rica de sentimentos, lindo!
Romma


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 23/02/2010 01:51  Atualizado: 23/02/2010 01:52
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18495
 Re: Antes que cheguem as cigarras
O céu muda de tamanho, se torna a proporção da saudade. Sua casa é quente e seu conto tem oito tentáculos como um polvo. Ah, e de uma beleza de útero. bj

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/02/2010 02:06  Atualizado: 23/02/2010 02:06
 Re: Antes que cheguem as cigarras
Nossa, amo poemas assim, gostaria de ler o livro, amei, amei, um dos mais lindos que já li, bjuss