A Carta Que Nunca Te Escrevi ou a Simples Confissão do Meu Maior Crime (Parte XXX)

Data 04/04/2010 11:34:09 | Tópico: Prosas Poéticas

Fermento em mim o desejo de olhar em redor do mundo e ver-me ali, sentado num monte de pedras que me foram atiradas durante anos, qualquer uma delas sem razão aparente, mas todas com um motivo declarado: o de me ensinar a ser e a viver. Junto, encontra-se um arvoredo pintado com as cores da época, o Sol brilha frio, mas realça a vontade que os meus olhos têm de ver e de descobrir tudo o que se lhes atravessa na frente. O terreno plano transporta-me por quatro décadas de acertos e desacertos, pelas memórias do que deveria ter sido e não foi, do que sou hoje, do que todos são hoje quando me olham e me dizem qualquer palavra, seja ela no sentido de me atirar mais uma pedra ou não. Levanto-me agora e toda a imagem muda, soa-me a mais pequena, pois... eu cresci! Cresci a recordar os cheiros das últimas chuvas de Inverno que se enterram no chão já molhado e ainda assim sedento das mãos dos homens a acariciá-lo, a penteá-lo e a semeá-lo com mais vida. Cresci também a recordar o cheiro a chão queimado pelos homens cujas mesmas mãos incendiaram com ganância. Sinto-me como algo à parte por nunca ter semeado ou queimado seja que chão for, mas ao mesmo tempo vejo-me aliviado. De manhã dou uma volta à terra, bem cedo quando ainda dormem quase todos e acaricio-me com o silêncio da noite recém adormecida, sabe bem ouvir o silêncio e conversar com ele. Embrenho-me nas páginas de alguns livros e ponho-me a imaginar as suas teorias postas em prática, algo quase impossível quando se olha para o mundo depois do silêncio. Os homens deixaram de ser homens faz muito tempo, agora são meros pedaços de carne que se entretêm com as coisas fúteis da vida, como a vida em si, não têm acção, não se interessam pela acção que outros possam ter, escondem-se nas sombras com a desculpa de que nada é com eles, escondem-se de mim e eu deles. Vive-se unicamente para ocupar um determinado espaço até que o corpo se deteriore e se ponha repousado numa caixa de madeira a decompor a carne que antes deambulava por aí. O sangue deixa de nos correr nas veias, deixamos de ter sentimentos e esperamos comodamente o nada que se segue a esta parca existência. As pedras onde inicialmente me sentei servem agora para roubar vidas e para dividir os fortes dos fracos, criam-se novos muros de vergonha, novas fronteiras a separar pais e filhos por décadas, por vidas inteiras, vingam os interesses individuais e morrem as culturas e as sociedades. Morro eu e morres tu.


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