
Sob epígrafe de António Cândido Franco
Data 07/05/2010 08:08:03 | Tópico: Poemas
| Entrego-me à lembrança. Beleza convulsiva Ruína pura.
António Cândido Franco
1.
esta é a ruína pura as mãos como cinzel moldando o rosto dos meus tempos de menino
2.
quando se eleva a língua de napalm dentro do poema obesa e inútil o cálamo rasura-a demandando a pureza do osso
3.
não sei por que caminho seguirá o meu poema sei somente de um frágil cântaro de onde um dia partiu como ave indagando um sul externo ao que mo fez erguer
4.
e no entanto é meu pertence-me como este sangue esta pulsação que me obriga a escrevê-lo como se novo fosse e sempre o mesmo
5.
porque é puro o gesto quando nasce por entre as ruínas do acto por que morre a pureza em seu efeito
6.
quando a morte bater à porta e abrires agasalha-a bem com o teu rosto que outro instante não terás para observar o estilhaçar da tua própria memória
7.
observa cada movimento o trajecto preciso dos estilhaços cada um dir-te-á por que a soma das partes é maior que o todo
8.
e celebra a luz e a sombra como veleiro sem rumo mas com destino
9.
compreendo no ofício da escrita a imagem do retorno ao pó e à cinza como se fosse um barco que partindo permanece ancorado ao seu regresso
10.
profano as palavras dos dias comuns demandado outro nexo às vestes que vestem nas ruas rasgando-lhes corpo e alma tudo para provar da sua música
11.
deita-te na ruína desse amor do mais antigo que em ti houver pronuncia as palavras que dizem ser as mais doces de todas as que vivem no âmago dos livros mas não ergas teu corpo para a estante habita nesse livro sem palavras que a teu lado se deita e quantas vezes te esqueces que um livro é quando se o lê
12.
do líquido amniótico a este ventre que pneuma de luz me enfuna para esta alucinada viagem que um dia ouvi chamar de vida
13.
e a tua voz acende o meu nome voz de retrato antigo que rompe o hímen da solidão
14.
não há vazio vazio é este copo de angústia por onde bebo da memória
15.
reaprendi a caligrafia das horas suspensas nas árvores
16.
pergunto-me se há caminho para além deste que como elefante cumpri mas tanto me faz não se pergunta ao rio por que corre nem ao mar por que o espera
17.
deixei-me ficar por aqui entre recortes antigos retirando às paredes os sussurros que as mãos do tempo amassou
18.
aceito o convite da noite ergo o meu corpo como quem brinda e sobre o seu corpo me deito e à noite entrego o meu cansaço despojo de guerra lembrança do pó colhido pelos trilhos
19.
se de súbito a noite se encontrar entre as quatro paredes do poema nega-lhe a chave fecha-lhe as janelas as portas e que a noite se derrame como tapete persa sobre o chão porque o mundo é um sonho e tudo é vão
20.
dos meus tempos de menino as mãos como cinzel moldando o rosto esta é a ruína pura
Xavier Zarco
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