Poemas : 

Sob epígrafe de António Cândido Franco

 
Entrego-me à lembrança. Beleza convulsiva
Ruína pura.

António Cândido Franco


1.

esta é a ruína pura
as mãos como cinzel moldando o rosto
dos meus tempos de menino

2.

quando se eleva
a língua de napalm
dentro do poema
obesa e inútil
o cálamo rasura-a demandando
a pureza do osso

3.

não sei por que caminho seguirá
o meu poema
sei somente de um frágil
cântaro
de onde um dia partiu como ave
indagando um sul externo
ao que mo fez erguer

4.

e no entanto é meu
pertence-me como este sangue
esta pulsação
que me obriga a escrevê-lo
como se novo fosse e sempre o mesmo

5.

porque é puro o gesto
quando nasce
por entre as ruínas do acto
por que morre a pureza em seu efeito

6.

quando a morte bater à porta e abrires
agasalha-a bem com o teu rosto
que outro instante não terás
para observar o estilhaçar
da tua própria memória

7.

observa cada movimento
o trajecto preciso dos estilhaços
cada um dir-te-á por que a soma
das partes é maior que o todo

8.

e celebra a luz e a sombra
como veleiro sem rumo
mas com destino

9.

compreendo no ofício da escrita
a imagem do retorno ao pó e à cinza
como se fosse um barco que partindo
permanece ancorado ao seu regresso

10.

profano as palavras dos dias
comuns demandado outro nexo
às vestes que vestem nas ruas
rasgando-lhes corpo e alma tudo
para provar da sua música

11.

deita-te na ruína desse amor
do mais antigo que em ti houver
pronuncia as palavras que dizem
ser as mais doces de todas
as que vivem no âmago dos livros
mas não ergas teu corpo para a estante
habita nesse livro sem palavras
que a teu lado se deita e quantas vezes
te esqueces que um livro é quando se o lê

12.

do líquido amniótico a este ventre
que pneuma de luz me enfuna
para esta alucinada
viagem
que um dia ouvi chamar de vida

13.

e a tua voz acende o meu nome
voz de retrato antigo
que rompe
o hímen da solidão

14.

não há vazio
vazio é este copo de angústia
por onde bebo da memória

15.

reaprendi a caligrafia
das horas suspensas nas árvores

16.

pergunto-me se há caminho
para além deste
que como elefante cumpri
mas tanto me faz
não se pergunta ao rio por que corre
nem ao mar por que o espera

17.

deixei-me ficar por aqui
entre recortes antigos
retirando às paredes os sussurros
que as mãos do tempo amassou

18.

aceito o convite da noite
ergo o meu corpo como quem brinda
e sobre o seu corpo me deito
e à noite entrego o meu cansaço
despojo de guerra lembrança
do pó colhido pelos trilhos

19.

se de súbito a noite se encontrar
entre as quatro paredes do poema
nega-lhe a chave fecha-lhe as janelas
as portas e que a noite se derrame
como tapete persa sobre o chão
porque o mundo é um sonho e tudo é vão

20.

dos meus tempos de menino
as mãos como cinzel moldando o rosto
esta é a ruína pura



Xavier Zarco

 
Autor
Xavier_Zarco
 
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