diz-se tempo, diz-se criatura

Data 06/06/2010 21:26:14 | Tópico: Textos

Manuel vive há muitos dias como frase de se dizer ao ouvido. Francisca conhece-o assim; gosta de passar na rua dele porque aí o relógio deixa de marcar aquilo: tempo, diz-se. Acontece aos sábados. Ficam os dois conversando muito sobre coisas de inventar. Francisca fitando céus; Manuel com olhar pregado aos chãos. Na rua onde o tempo se cala céus e chãos alteram-se junto com o artigo do diálogo. Francisca muito colada à terra; é como gosta de andar: descalça. Manuel muito colado ao assento mesmo à beira da janela sempre aberta do sótão. Pensa ele que ali é mais fácil viver como frase de se dizer ao ouvido. É, pelo menos, o que lhe dizem os olhos quando caem nos baús povoando, voando, povoando a divisão. Aconteceu no dia habitual. Manuel decidiu deixar de ser aquilo: criatura, diz-se. Esconderijo definitivo. Da boca do homem aos ouvidos de Francisca o trajecto do comunicado foi descendente como de costume, mas a velocidade não conhecera até aí tanta pressa. Fosse bala a resposta de Francisca e Manuel nem teria tido aquilo: tempo para agradecer à mulher a ajuda no remate da decisão. Francisca descolou. Virou a esquina. O tempo - o tempo? - voltou. Manuel de janela aberta à frente causando-lhe náuseas. Vómito de mundo todas as manhãs como mulher grávida de homem indesejado. Vários dias habituais se passaram sem que se multiplicassem céu e chão na rua sem relógio. Francisca precisava de sentir a terra bem pregada aos pés por culpa das horas sem tempo dos sábados. Patrulhada pelo agente da saudade foi ver se Manuel ainda era. Quando chegou a janela estava fechada.


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