Insatisfação eterna

Data 05/12/2010 20:13:53 | Tópico: Contos -> Tristeza

Lorraine jamais acreditara que a humanidade fosse imarcescível, sempre fora céptica relativamente às questões da vida depois da morte, para ela o homem era pura e simplesmente feito de matéria orgânica e minerais, que acabaria por se decompor e retornar à terra mãe.
Aos quarenta e cinco anos, com toda uma vida pela frente, formação académica em várias áreas e um nome de prestígio, nada faria prever que a sua constante e compulsiva insatisfação pessoal a levaria a cometer o maior acto de cobardia que alguém pode atentar contra si mesmo.
Após 12 anos de casamento, que não lhe deram rebentos, por força de uma incompatibilidade genética, o desgaste de uma vida sempre em mutação, pela busca de novos conhecimentos e a diferença de interesses que com os anos se vão acentuando, foram os factores que estiveram no cerne da sua ruptura matrimonial.
Um divórcio tratado juridicamente às pressas, ironicamente dito amigável, deixara Lorraine em desvantagem financeira relativamente ao homem que desposou aos 18 anos.
Lyon, a cidade que lhe serviu de berço, junto ao Jardin Botanique, no chamado coração da cidade, era, agora 15 anos volvidos, apenas uma lembrança envolta em muita saudade e nostalgia. De Jean-Luc a memória dos primeiros anos de felicidade em comum, do tempo em que ainda construíam sonhos conjuntos. Depois a ansiedade de não gerarem filhos e a traição do marido era o que mais vivo retinha na memória e lhe acinzentava o coração.
Laura, sua mãe, falecera vitimada por um linfoma, o que a desgastara e deixara só na companhia do pai, também ele, debilitado na luta contra o vil Alzeihmer.
O prédio de esquina da Rua da Palmeira, em Setúbal, acordara sobressaltado naquela madrugada fria do mês de Janeiro, quando um grito estridente e gélido, acompanhado por um arrepiante embate, acusou algo fora do normal e os vizinhos acorreram ao vão da escada. Lá em baixo, o que sobrava do atraente corpo de Lorraine, inanimado e indescritivelmente envolto numa pasta de sangue, é imagem que jamais será apagada da mente óptica de quem testemunhou tão triste cena.
No velório, poucas as pessoas que fizeram questão de lhe prestar uma derradeira homenagem, talvez porque aos poucos, tivesse afastado uma por uma as suas amizades e conhecimentos, uma vez que dedicou os últimos quinze anos da sua vida aos estudos e progresso na carreira, de tal forma que recusava todas as excelentes oportunidades de trabalho que tivera, sempre por achar que nunca se prestaria a ficar sob a tutela de outro profissional e ser sua subalterna. Por conta desta obsessão e preconceito, a sua condição financeira foi-se agravando e as dívidas contraídas para montar negócios por conta própria, que nunca resultaram, por força da sua arrogância e azedume, sucediam-se e amontoaram-se.
A urna fechada, protegia os mais curiosos de uma visão dos infernos, ao mesmo tempo que devolvia à memória de Lorraine um pouco de dignidade.
Nos rostos presentes na cerimónia fúnebre que antecede a derradeira passagem pelo crematório, raros eram os semblantes carregados de lágrimas, como se de um acto previsível e incontornável se tratasse.
Sobre a urna um pano negro com a cruz bordada a dourado e um único palmito de flores em tons de rosa e branco faziam lembrar que o corpo que ali jazia pertencia a uma mulher ainda na flor da idade.
Suspensa no ar, atónita e aparentemente perturbada, não fora tratar-se de um periespírito, Lorraine debatia-se contra a imagem que os seus olhos avistavam por baixo do seu corpo fluído, vestido de semi-matéria.
Gritou com quantas forças tinha, convicta de que seria ouvida, já que os patetas que se encontravam na capela mortuária deveriam ter uma espécie de torcicolo em série, uma vez que ninguém se dignava em olhar para cima e tirá-la daquele suplício, que era estar pendurada:
- Mas que raio de teatro é este? Que diabo estou eu aqui a fazer? Façam favor de me tirar imediatamente daqui!
Por mais que gritasse e estrebuchasse não lhe servia de grande coisa. Achava-se estranha e leve como uma pluma, mas sentia como se estivesse anestesiada, uma dor meio atordoada incomodava-a.
Os seus olhos fixaram-se, por fim, na urna e sem perceber bem como, uma vez que esta estava fechada, conseguiu ver o vulto que estava lá dentro, o que lhe provocou um enorme arrepio na medula. Aquela mulher ali em baixo, completamente desfigurada era ela, acabara de perceber que os seus intentos foram cumpridos e que, por mais que gritasse e se insinuasse, nunca seria vista pelos poucos amigos e familiares que ali se encontravam a velar o seu desfigurado cadáver.
Percebeu que flutuava e que por mais que tocasse nas pessoas que estavam na sala e as trespassasse, o mais que conseguia provocar nelas seria um arrepio passageiro. Irritou-se, afinal ela estava habituada a ter control das situações e não sabia o que fazer, nem para onde ir. Viu chegar o cangalheiro, pegar na urna e metê-la no carro funerário. Não sabia se havia de ir no carro funerário, ou recusar-se a fazer a derradeira viagem, que segundo os familiares presentes seria até ao crematório das Olaias. Lembrou-se que essa seria a sua última vontade e que pelo menos essa fora respeitada pela família e resolveu entrar na berlinda e acompanhar os seus próprios restos mortais.
Viu a urna entrar no forno crematório e não sentiu nada, pois ainda lhe doíam os membros inferiores e a parte da espinal medula. Depois acompanhou as cinzas que, tal como era sua vontade, foram deitadas ao Rio Sado, sobre a sua muito querida Serra da Arrábida.
Os acompanhantes do acto fúnebre dispersaram, cada um às suas vidas, e Lorraine ficou vagueando sem destino. Para onde ir agora que tomara consciência que desencarnara?
Difícil será encaminhá-la na direcção do caminho da luz.








Maria Fernanda Reis Esteves
50 anos
natural: Setúbal



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