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Insatisfação eterna

 
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Insatisfação eterna
 
Lorraine jamais acreditara que a humanidade fosse imarcescível, sempre fora céptica relativamente às questões da vida depois da morte, para ela o homem era pura e simplesmente feito de matéria orgânica e minerais, que acabaria por se decompor e retornar à terra mãe.
Aos quarenta e cinco anos, com toda uma vida pela frente, formação académica em várias áreas e um nome de prestígio, nada faria prever que a sua constante e compulsiva insatisfação pessoal a levaria a cometer o maior acto de cobardia que alguém pode atentar contra si mesmo.
Após 12 anos de casamento, que não lhe deram rebentos, por força de uma incompatibilidade genética, o desgaste de uma vida sempre em mutação, pela busca de novos conhecimentos e a diferença de interesses que com os anos se vão acentuando, foram os factores que estiveram no cerne da sua ruptura matrimonial.
Um divórcio tratado juridicamente às pressas, ironicamente dito amigável, deixara Lorraine em desvantagem financeira relativamente ao homem que desposou aos 18 anos.
Lyon, a cidade que lhe serviu de berço, junto ao Jardin Botanique, no chamado coração da cidade, era, agora 15 anos volvidos, apenas uma lembrança envolta em muita saudade e nostalgia. De Jean-Luc a memória dos primeiros anos de felicidade em comum, do tempo em que ainda construíam sonhos conjuntos. Depois a ansiedade de não gerarem filhos e a traição do marido era o que mais vivo retinha na memória e lhe acinzentava o coração.
Laura, sua mãe, falecera vitimada por um linfoma, o que a desgastara e deixara só na companhia do pai, também ele, debilitado na luta contra o vil Alzeihmer.
O prédio de esquina da Rua da Palmeira, em Setúbal, acordara sobressaltado naquela madrugada fria do mês de Janeiro, quando um grito estridente e gélido, acompanhado por um arrepiante embate, acusou algo fora do normal e os vizinhos acorreram ao vão da escada. Lá em baixo, o que sobrava do atraente corpo de Lorraine, inanimado e indescritivelmente envolto numa pasta de sangue, é imagem que jamais será apagada da mente óptica de quem testemunhou tão triste cena.
No velório, poucas as pessoas que fizeram questão de lhe prestar uma derradeira homenagem, talvez porque aos poucos, tivesse afastado uma por uma as suas amizades e conhecimentos, uma vez que dedicou os últimos quinze anos da sua vida aos estudos e progresso na carreira, de tal forma que recusava todas as excelentes oportunidades de trabalho que tivera, sempre por achar que nunca se prestaria a ficar sob a tutela de outro profissional e ser sua subalterna. Por conta desta obsessão e preconceito, a sua condição financeira foi-se agravando e as dívidas contraídas para montar negócios por conta própria, que nunca resultaram, por força da sua arrogância e azedume, sucediam-se e amontoaram-se.
A urna fechada, protegia os mais curiosos de uma visão dos infernos, ao mesmo tempo que devolvia à memória de Lorraine um pouco de dignidade.
Nos rostos presentes na cerimónia fúnebre que antecede a derradeira passagem pelo crematório, raros eram os semblantes carregados de lágrimas, como se de um acto previsível e incontornável se tratasse.
Sobre a urna um pano negro com a cruz bordada a dourado e um único palmito de flores em tons de rosa e branco faziam lembrar que o corpo que ali jazia pertencia a uma mulher ainda na flor da idade.
Suspensa no ar, atónita e aparentemente perturbada, não fora tratar-se de um periespírito, Lorraine debatia-se contra a imagem que os seus olhos avistavam por baixo do seu corpo fluído, vestido de semi-matéria.
Gritou com quantas forças tinha, convicta de que seria ouvida, já que os patetas que se encontravam na capela mortuária deveriam ter uma espécie de torcicolo em série, uma vez que ninguém se dignava em olhar para cima e tirá-la daquele suplício, que era estar pendurada:
- Mas que raio de teatro é este? Que diabo estou eu aqui a fazer? Façam favor de me tirar imediatamente daqui!
Por mais que gritasse e estrebuchasse não lhe servia de grande coisa. Achava-se estranha e leve como uma pluma, mas sentia como se estivesse anestesiada, uma dor meio atordoada incomodava-a.
Os seus olhos fixaram-se, por fim, na urna e sem perceber bem como, uma vez que esta estava fechada, conseguiu ver o vulto que estava lá dentro, o que lhe provocou um enorme arrepio na medula. Aquela mulher ali em baixo, completamente desfigurada era ela, acabara de perceber que os seus intentos foram cumpridos e que, por mais que gritasse e se insinuasse, nunca seria vista pelos poucos amigos e familiares que ali se encontravam a velar o seu desfigurado cadáver.
Percebeu que flutuava e que por mais que tocasse nas pessoas que estavam na sala e as trespassasse, o mais que conseguia provocar nelas seria um arrepio passageiro. Irritou-se, afinal ela estava habituada a ter control das situações e não sabia o que fazer, nem para onde ir. Viu chegar o cangalheiro, pegar na urna e metê-la no carro funerário. Não sabia se havia de ir no carro funerário, ou recusar-se a fazer a derradeira viagem, que segundo os familiares presentes seria até ao crematório das Olaias. Lembrou-se que essa seria a sua última vontade e que pelo menos essa fora respeitada pela família e resolveu entrar na berlinda e acompanhar os seus próprios restos mortais.
Viu a urna entrar no forno crematório e não sentiu nada, pois ainda lhe doíam os membros inferiores e a parte da espinal medula. Depois acompanhou as cinzas que, tal como era sua vontade, foram deitadas ao Rio Sado, sobre a sua muito querida Serra da Arrábida.
Os acompanhantes do acto fúnebre dispersaram, cada um às suas vidas, e Lorraine ficou vagueando sem destino. Para onde ir agora que tomara consciência que desencarnara?
Difícil será encaminhá-la na direcção do caminho da luz.








Maria Fernanda Reis Esteves
50 anos
natural: Setúbal
 
Autor
Nanda
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Enviado por Tópico
GeMuniz
Publicado: 05/12/2010 20:24  Atualizado: 05/12/2010 20:24
Membro de honra
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 Re: Insatisfação eterna
Um conto que prendeu-me até o final Nanda. Como dizem aqui no Brasil, você é "craque"!

bjs

Enviado por Tópico
carolcarolina
Publicado: 05/12/2010 20:31  Atualizado: 05/12/2010 20:31
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Localidade: RS/Brasil
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 Re: Insatisfação eterna
Querida Amiga
Poetisa Nanda!

Nossa que conto!
Mas tem gente que não acredita em nada, eu acredito na vida após a morte e que voltarei novamente em outro corpo.
Difícil mesmo ela encontrar a luz.
Gostei do texto!
Bjinhos
♫Carol

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/12/2010 20:34  Atualizado: 05/12/2010 20:36
 Re: Insatisfação eterna
Prezada poetisa Nanda, Deus na sua infinita misericórdia, perdoa também aos que puseram fim à própria vida. Essa alma será socorrida e encaminhada para a luz, por uma equipa espiritual. Deus nunca abandona os seus filhos. Bonito texto.

Beijinhos,

MÁRCIA ROSAS

Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 05/12/2010 20:37  Atualizado: 05/12/2010 20:37
Colaborador
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 Re: Insatisfação eterna
Querida Nanda,
Ler-te é sempre delicioso aprendizado de escrita e vida.Há que passe a existência terrena a lamentar o que não tem, em vez de regozijar-se pelo que tem e assim vive insatisfeito.Não cresce por dentro, nem expande o olhar, e, perde-se pelo caminho da jornada.Apreciei muito!
Bjins, Betha.

Enviado por Tópico
ÔNIX
Publicado: 05/12/2010 20:44  Atualizado: 05/12/2010 20:44
Membro de honra
Usuário desde: 08/09/2009
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Mensagens: 2683
 Re: Insatisfação eterna
Muitos são os caminhos em direcção à Luz, muitos são os resgistos que nos prendem numa densidade que já faz parte de um passado ou passados, mas que pretendemos manter até que se mostre verdadeira luz

Gostei muito Nanda

beijo

Dolores Marques

Enviado por Tópico
Gyl
Publicado: 05/12/2010 21:39  Atualizado: 05/12/2010 21:39
Usuário desde: 07/08/2009
Localidade: Brasil
Mensagens: 16070
 Re: Insatisfação eterna
"Há mais coisas entre o Céu e a Terra do que possa sonhar nossa vã filosofia." Texto para se embeber e para se refletir. Na prosa ou na poesia a poetisa sempre nos encanta e alucina. Um beijo amigo. Valeu, Nanda!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/12/2010 21:47  Atualizado: 05/12/2010 21:47
 Re: Insatisfação eterna
Nanda, li o seu interessante conto com avidez! Que talento para a prosa! Beijos!

Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 05/12/2010 22:27  Atualizado: 05/12/2010 22:28
Usuário desde: 28/07/2009
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Mensagens: 10437
 Re: Insatisfação eterna
Nandinha sabes como se costuma dizer? Se mais houvesse mais ía! É verdade gostei imenso e deixa-me contar que já tive um sonho onde vivi este papel (morte) da Lorraine, aflitivo por demais, estava a ler-te e a lembrar, se te tivesse contado julgaria
que o tinhas escrito.

Muito bom, fico à espera de mais.
Beijinho

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/12/2010 22:31  Atualizado: 05/12/2010 22:31
 Re: Insatisfação eterna
Olá Nanda!

Adorei a leitura.

Como sabe estou agora muito mais virado para a prosa, e nada melhor para quem dedica parte do seu tempo a ler e escrever prosa, do que ter a sorte de ler este seu conto.

Gostei imenso, estas palavras não são apenas um comentário, são afirmação de um momento esplêndido de prazer com a passagem pala sua escrita.

Parabéns

Beijo
JLL

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/12/2010 22:40  Atualizado: 05/12/2010 22:40
 Re: Insatisfação eterna
Cara Nanda seu conto é dos melhores, gostei muito e fiquei atenta do principio ao fim. Parabéns e obrigado por partilhar. Abraços Alice

Enviado por Tópico
mariagomes
Publicado: 05/12/2010 23:29  Atualizado: 05/12/2010 23:29
Colaborador
Usuário desde: 18/04/2010
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 Re: Insatisfação eterna
Olá amiga, li , apreciei e gostei, um conto bem contado, como bem sabes fazer.
beijinhos
mariagomes

Enviado por Tópico
ângelaLugo
Publicado: 06/12/2010 03:53  Atualizado: 06/12/2010 03:53
Colaborador
Usuário desde: 04/09/2006
Localidade: São Paulo - Brasil
Mensagens: 14852
 Re: Insatisfação eterna p/ Nanda
Nanda querida

Maravilha de conto...Parabéns!

De nada adiante ser grande na vida
se não acredita na imortalidade da alma
viveu em vão e nada vai mudar o que se fez
por aqui se não for digna da sua existência

Adorei ler...Aliás adoro ler-te

Beijinhos no coração

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/12/2010 06:15  Atualizado: 06/12/2010 06:15
 Re: Insatisfação eterna P/ Nanda
Querida amiga , apetece-me gritar , mas de que me adianta se o som do teclar não é possível de registar-se neste Lorraine ? Não sei se veio em boa ou má hora ... Li o teu conto pouco depois de ser postado ... calei e fui dar uma volta à minha volta ... Agora que das voltas voltei , lembrei Luigi Tenco e Dalida ... podia recordar outros tantos ... para quê ? ... Nesta hora , talvez não percebas este meu "delirar" , mas mais logo quando eu postar o texto que escrevi há cerca de uma hora e meia talvez este meu deambular faça algum sentido ... atinando ... isso mesmo , "para onde ir agora?"...

Beijos

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 07/07/2011 15:09  Atualizado: 07/07/2011 15:09
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: Insatisfação eterna
Obrigada a todos.
Beijos
Nanda

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/10/2014 05:57  Atualizado: 18/10/2014 05:57
 Re: Insatisfação eterna
Bem narrado , bem vivo e bem sentido.



Tu trouxe nesse texto uma verdade.



Nada elimina à tristeza , usando todo valor que nós demos ao mundo é o mundo que não temos controle.










Eterno valor , longe e tão perto...




Foge da realidade e é belo fora de qualquer entendimento.



Abraço,




Coletivo