Deslizar

Data 28/06/2011 20:59:39 | Tópico: Textos

Deslizar


Ruído catártico – opaco – de fundo;
Adivinhava-se atordoadamente suave; purgador, só: o Cosmos.

– Não há espaço para lágrimas –

Apalpei o metafísico e imortalizei a impressão. Violei a ordem. Desnudei a gravidade. Impus lei à lei – esfreguei-a na sua face como resistência ao extremo. E fui seguindo, estendido, patinando por devaneios eternos, numa quietude obsequiosa e divinal.

Num contentamento imperecível, acabei por fechar os olhos. Conseguia ver. Via: o mais basilar do agregado de matéria: as primeiras páginas do livro das Aventuras dos Sentidos; a brincadeira das percepções; a receita do enigmático que contenta, do indefinido que aquece. E vai aquecendo.

Num momento: sou a energia da veemência do contacto; sou as perpétuas pisadas dos transeuntes da Lua, o júbilo insuportável do primeiro flutuante no vazio celestial; sou todos e cada sorriso, arrancados a ferros àqueles que o tempo mais apedrejou. Sou o aprazimento infinito.

...


Distraído, sem dar por mim, colido com um Sonho. Violentamente. Quem diria que deslizava com tal veemência que o desagregaria? (Quem diria, mais até, que se podia deslizar com veemência?). Desagreguei-o. Oh sim!

Num eclipsar do ímpeto vão-se sublimando cristais de nostalgia – essas réstias da matéria dos sonhos –, trespassados pelo vigor de um embate episódico, multiplicando-se eternamente, interceptando rotas de viajantes desnorteados, porque o norte não é senão um limite; e os limites nunca se interceptam com a matéria dos sonhos.

...


Recomposto, tentei atribuir aos meus movimentos alguma relevância; mas como se de um perdido submerso no seu oceano de razões e justificações me tratasse – tentando, desesperadamente, sem efeito, bater os braços –, cada movimento transparecia a minha insuficiência, a minha impotência, o meu nada, enquanto deslizava segundo um rumo que não controlava: o meu norte tinha sido negado pelo contacto fantástico com o Sonho. Estava, indivisivelmente, entregue aos desígnios do acaso.

O intuito entregava-se, por fim, ajoelhado, a si; remetido ao que era. E não era muito. Era bem mais.

Era-o porque a alma era por fim o que a alma quer dizer. Era-o porque a alma tinha feito um tratado de paz com a sua infinitude.
Sentia-me assustadoramente leve. Leve, apesar do aterrorizador do imenso. Leve, apesar da inconstância do desconhecido.

Deslizei




Embriagado pela beleza da luz sedutora e afiada das estrelas, permaneci. Sem que me apercebesse inicialmente, uma dor aguda assaltou-me o espírito. Cada vez mais. A formosura estelar intermitia-se com perfurações nada misericordiosas do desconhecido, acompanhada por repetidas dilatações e compressões das minhas pupilas. Turbilhava-me o sangue que se ebulia gradualmente; latejava-me o íntimo.

Do meu tórax ia florescendo a mais insustentável luz, a mais incomensurável manifestação aprazível, escoltada por uma metamorfose violenta e insuportável. Os agudos vincavam-se e a atroadora ostentação pungente de energia, que rompia já as minhas vísceras, intensificava-se.

Num concentrado inenarrável de sentimento, numa veemência abstracta carnal, explodiu magnificentemente, espalhando-se em espectros intermináveis, um enredo infinitamente progressivo de preenchimento dos espaços destinados à emoção: um raiar de humanescas sensações, sentidos, do subtil inatingível, e um pouco mais que tudo isso.

...



Da penumbra observam-se os últimos pontos da luz. Daquela luz: da minha luz. Foi-se tornando progressivamente menos nítida, rendida ao crepúsculo que se afigurava agora possessivo, cada vez mais.

Estava já escuro quando deixei de deslizar.



Rui Gomes


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