Com o devido respeito

Data 04/08/2012 14:14:18 | Tópico: Crónicas

Faz agora este mês de Agosto, dezasseis anos que eu sofri o maior embate da minha vida, a morte da minha mãe, na altura com 59 anos e uma saúde de ferro, malgrado o infortúnio de, naquele fatídico dia 16 de Agosto de 1996, estar no sítio errado, à hora errada, ou não teria sido atropelada por um BMW, de alta cilindrada, de um emigrante francês que, de férias em Portugal, queria fazer juz aos muitos cavalos do motor do seu automóvel e não cumpriu o sinal de trânsito que proíbia a circulação a mais de 40KM/h, naquele pedaço de estrada apertado, sem berma e em curva acentuada, seguida de contracurva.
Estes pensamentos povoavam a minha mente , no preciso momento em que me dirigia para a mesma capela mortuária onde havia estado o corpo da minha mãe. Desta vez, a minha amiga passava pela mesma dor, a perda da mãe, flagelada pelo desgaste da doença de alzeihmer.
À entrada da capela, deparei-me com a berlinda estacionada e entrei ao portão, cumprimentando de imediato um rosto familiar, o sócio do marido da minha amiga. Cá fora, já se ouvia o padre a proferir as exéquias. Entrei e como que em êxtase pelas lembranças que aquele lugar me devolvia, fui caminhando até ao ajuntamento que seguia, com fé, a referida prática religiosa, no preciso momento em que o padre e os presentes faziam o sinal da cruz e era encomendada aquela precisa alma a Deus e à Santa Igreja.
Compenetrada e ausente da realidade, como é meu apanágio, fiquei naquele ambiente de dor e emoção, ao mesmo tempo que me começei, por fim, a aperceber que os rostos do velório não me eram familiares, ou melhor, um deles até era e curiosamente alguém cujo marido até era colega de profissão do meu marido e do marido da minha amiga. Mas dela, que era filha da defunta, nem sinal. Entretanto, o tal rosto familiar cumprimentou-me com o olhar, ao qual eu correspondi de igual forma e lá me deixei ficar a acompanhar as palavras do padre que me remetiam para a enorme crença que devoto à teoria da reencarnação. Mais uma vez envolta em fé e fantasia divaguei por instantes e dei comigo a imaginar por onde andaria o espírito da minha mãe, por certo rodeado de flores e recebendo os recém-chegados com a abnegação de uma enfermeira dedicada, vocação que não viu cumprida no plano terreno, mas quem sabe não é esse o papel de que foi acometida num outro plano, já que a sua grande vontade, sempre foi servir o próximo.
De repente, começo a apreceber-me que as pessoas se viravam, uma após a outra, para trás, como que a tentar perceber quem eu era e o que ali estaria a fazer, assim tão embrenhada em orações e com ar tão complacente. Senti-me observada e deslocada e para tirar as dúvidas também eu resolvi olhar para trás para comprovar se era para mim que toda a gente olhava. Nesse preciso momento, reparei que encostado ao meu braço esquerdo jazia um outro corpo, cuja foto colocada na parte traseira do caixão era efetivamente a da mãe da minha amiga. Bem atrás de mim, também, sem me ter ainda reconhecido, estava a minha amiga, lavada em lágrimas, junto da mãe.
Apressei-me a abraçá-la e a confortá-la, afinal fora para isso que lá fora. Ela perguntou-me se o corpo junto ao altar era de algum familiar meu e eu respondi-lhe que fora tudo um “mal entendido” e que eu estava ali, justamente, para lhe dar os meus sentimentos, pois era conhecedora como ninguém da dor que ela estava sentindo.
Mesmo nos piores momentos, vale-me a capacidade que tenho para rir de mim própria e da propensão que eu tenho para meter os pés pelas mãos. Não sei se é coisa de nativa de peixes ou de poeta.
Com o devido respeito pela dor alheia, que Deus me perdoe...



Maria Fernanda Reis Esteves
52 anos
natural: Setúbal



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