
Manhã de domingo
Data 20/01/2013 12:33:38 | Tópico: Poemas
| Manhã de domingo Dia nublado A vida acorda sem o instante amarelo e menino do sol Na rua soa a monotonia dos ruídos dos carros a encobrir a vida e ignorar a barulhenta certeza da sandice que o homem acalenta O homo sapiens sapiens fere a cidade suprimindo o silêncio e encobrindo a Voz imanente à Alma E a cidade geme e explode e grita... Um alarme dispara para proclamar em voz alta a insensatez humana Indiferentes à insanidade pássaros cantam Nas árvores os pássaros aliam-se aos anjos, e cantam, por que é de ser pássaro cantar Em algum lugar um bem-te-vi lança, súbito no ar, o seu mantra: bem-te-viiii Outros pássaros se manifestam, cada um no seu idioma, encobertos pelo ruído dos carros São tristezas a vida nesta incessante dicotomia, nesta afronta plangente onde a vida caminha para o ignaro fim Em algum lugar da cidade nasce uma flor, em um jardim? Uma flor irremovível, que alguém espera Nasce a flor e com ela nasce mais um verso e quando a chuva cair o verso se fará poesia, independente da ignomínia daqueles para quem o amor e a poesia têm outra existência, outro devir que não o de ser amor e poesia Mas, a flor desabrocha, por que é do sentido da vida da flor desabrochar Flor de orvalho e eflúvios de estrelas mais um acalanto de ternura dos poetas, mais um milagre em busca do equilíbrio Nasce a flor e o som da flor nascendo confunde-se com o som do Universo expandindo-se e contraindo-se Há na vida e na morte expansão e contração Nascer é fazer um pacto silente com a morte e a cada instante a impermanência entoa, nua, o cântico cego do tempo a passar indolente após o giro da ampulheta, após a intimidade do amor Após o exílio silencioso da minha face na candura do teu colo e dos versos trêmulos que leio de olhos fechados, com as pontas dos dedos na manhã nublada de domingo onde borboletas voejam aprendendo as flores para apagar as noites crispadas pelo teu nome nos ventos Os pássaros cantam sonora e comoventemente compondo a claridade do verão com a qual o Amor entrará pela minha janela e o sol se fará atado ao instante absorto dos meus olhos
(*É a poesia ficando repentinamente como a lembrança da primeira noite em todas as outras noites...)
*Lêdo Ivo in Poesia Completa - 1940 - 2004
|
|