Ensaio sobre coisas insignificantes

Data 26/02/2013 02:16:15 | Tópico: Textos

Há dias ouvi um debate sobre literatura e técnicas infalíveis de escrita, que, segundo aqueles senhores, aplicadas à letra, não têm como não serem fecundas e após um tempo indeterminado de gestação, virem a dar à luz belos exemplares de leitura capazes de arrancar exclamações de críticos improváveis. Pegando na ideia, lembrei-me da minha própria pessoa cuja existência possui um tesouro que até aqui desconhecia. Volto então às minhas humildes origens e vasculhando no que tão bem conheço, alguma coisa hei-de juntar que me encha a carroça...
O que trago na bagagem não são poemas nem folhas de plátano amarelecidas e esquecidas entre páginas de livros que ninguém quer ler e que se estorvam uns aos outros nas prateleiras da estante. O que trago na bagagem, são estórias que o mundo não conhece porque se deu o caso de não ter havido até hoje quem as contasse. Outras parecidas haverá por certo. Não estas! Não porque não houvesse quem as viveu e as sentisse na pele, mas porque a esses lhes negaram a oportunidade de segurarem nas mãos o papel e o lápis com que se escrevem as memórias de um povo analfabeto. Houve tempos em que as letras não eram importantes. Não tão importantes quanto o pão que era preciso levar para a mesa, ou melhor dizendo, para o bordo da fogueira onde o lume ajudava a animar a refeição. Portanto, as ferramentas com que se escreviam as estórias diárias desses tempos, eram outras. Tinham um cabo de madeira e rasgavam a terra ao poder da força que provinha do corpo, logo desde a idade em que o corpo desse sinais de já possuir alguma. E dia após dia, mês após mês, ano após ano, muitas estórias se foram escrevendo por aqueles pedaços de chão relvado, que, se fosse visto do céu, teria a forma de uma manta de retalhos igualzinha àquelas que a Ti Rosária tinha na cama e que lhe serviam para enganar o frio com o chumbo que lhe calcava os ossos e na qual acabaria por ser encontrada morta numa certa manhã de Março, antes que a primavera lhe tivesse trazido o sol ao pátio e este lhe assomasse à janela.


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=242305