Textos : 

Ensaio sobre coisas insignificantes

 
Há dias ouvi um debate sobre literatura e técnicas infalíveis de escrita, que, segundo aqueles senhores, aplicadas à letra, não têm como não serem fecundas e após um tempo indeterminado de gestação, virem a dar à luz belos exemplares de leitura capazes de arrancar exclamações de críticos improváveis. Pegando na ideia, lembrei-me da minha própria pessoa cuja existência possui um tesouro que até aqui desconhecia. Volto então às minhas humildes origens e vasculhando no que tão bem conheço, alguma coisa hei-de juntar que me encha a carroça...
O que trago na bagagem não são poemas nem folhas de plátano amarelecidas e esquecidas entre páginas de livros que ninguém quer ler e que se estorvam uns aos outros nas prateleiras da estante. O que trago na bagagem, são estórias que o mundo não conhece porque se deu o caso de não ter havido até hoje quem as contasse. Outras parecidas haverá por certo. Não estas! Não porque não houvesse quem as viveu e as sentisse na pele, mas porque a esses lhes negaram a oportunidade de segurarem nas mãos o papel e o lápis com que se escrevem as memórias de um povo analfabeto. Houve tempos em que as letras não eram importantes. Não tão importantes quanto o pão que era preciso levar para a mesa, ou melhor dizendo, para o bordo da fogueira onde o lume ajudava a animar a refeição. Portanto, as ferramentas com que se escreviam as estórias diárias desses tempos, eram outras. Tinham um cabo de madeira e rasgavam a terra ao poder da força que provinha do corpo, logo desde a idade em que o corpo desse sinais de já possuir alguma. E dia após dia, mês após mês, ano após ano, muitas estórias se foram escrevendo por aqueles pedaços de chão relvado, que, se fosse visto do céu, teria a forma de uma manta de retalhos igualzinha àquelas que a Ti Rosária tinha na cama e que lhe serviam para enganar o frio com o chumbo que lhe calcava os ossos e na qual acabaria por ser encontrada morta numa certa manhã de Março, antes que a primavera lhe tivesse trazido o sol ao pátio e este lhe assomasse à janela.


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

Impulsos

https://socalcosdamemoria.blogspot.com/?

https://www.amazon.es/-/pt/dp/1678059781?fbc...

 
Autor
cleo
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1472
Favoritos
2
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
23 pontos
7
0
2
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/02/2013 07:38  Atualizado: 26/02/2013 07:38
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes
Cleo, essa sua bagagem é valiosa pois não há muitos que queiram glorificar o povo, o pilar mais nobre e genuíno de uma nação. Este texto ficou um primor. Mil parabéns.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/02/2013 12:21  Atualizado: 26/02/2013 12:23
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes
Querida Cleo,

É a tua própria história, que nenhuma técnica literária será capaz de pintar com a mesma verdade, e com a mesma emoção. Lembrou-me esse poema de Carlos Drummond de Andrade que agora te dedico, e diz por mim, da beleza genuína do seu texto:


Infância


Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Bj.

Enviado por Tópico
fotograma
Publicado: 26/02/2013 12:52  Atualizado: 26/02/2013 12:52
Colaborador
Usuário desde: 16/10/2012
Localidade:
Mensagens: 1473
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes
são as coisas insignificantes que ninguém mais repara além do poeta que rendem boa poesia, como aqui nessa lembrança bem bordada

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/02/2013 14:41  Atualizado: 26/02/2013 14:41
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes
além de toda espantosa literatura e suas demostrações técnicas de escrita infalível, se deve virar o olhar com parcimônia para retratos como este que traduzem vivências daqueles que escrevem, que desejam partilhar os sorrisos e as tristezas tatuadas na sua alma; este é o lugar onde essas páginas devem ser folheadas, serem aceitas, sim, num site como esse, o Luso-Poemas
bj e meu abraço caRIOca, Cleo.

Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 27/02/2013 01:33  Atualizado: 27/02/2013 01:33
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes
Cleo, tinha que voltar aqui para dizer: a memória das palavras ultrapassa todas as técnicas artísticas que lhe quiserem ensinar - elas sabem, na sua simplicidade, no seu dom natural, a Arte das mãos que as escrevem. Belo texto, tão ao meu gosto!

Beijo de boa noite.

Teresa

Enviado por Tópico
Srimilton
Publicado: 27/02/2013 09:56  Atualizado: 27/02/2013 09:56
Membro de honra
Usuário desde: 15/02/2013
Localidade: Nenhuma
Mensagens: 1830
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes
Um texto bonito e elegante. Escrita fácil e confortável.
Adorei!

abs...PAZ!....Milton

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 02/03/2013 11:07  Atualizado: 02/03/2013 11:07
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: Ensaio sobre coisas insignificantes/Res. A Todos
Companheiros e amigos, o meu profundo agradecimento por todas as vossas palavras aqui deixadas e que enriqueceram este meu texto onde pretendi mostrar, sob vários aspectos, a importância das coisas segundo o valor que se lhes der...

Muito e muito obrigado a todos!