Carta à (minha) morte

Data 27/04/2013 09:45:28 | Tópico: Poemas

Carta à (minha) morte

Já me afligiu muito sentir-te perto de alguém que amo – uma aflição de não compreender-te...? não!... não: é mais de não conseguir conceber o sorriso (mesmo se... ), o desprendimento (ainda que... ), a alegria (por vezes...), o amor (sempre), de quem te sabe próximo, por desígnio e lei. A entrega complacente.... a gratidão, iluminada por mais um ciclo de sol... a natural assumpção de um compromisso, quase o alívio mascarado de pressa de chegar, ou o descanso da cruz, mascarado de dor ostensivamente ignorada.

Leviana e infiel morte, que amas perdidamente, ao ponto de indiscriminares leitos, colos, estradas e instantes! Possessiva e cruel morte, que não respeitas paixões, nem amores, nem laços de sangue! Tanto nos cercas, tantos nos seduzes, tanto te insinuas, tanto nos atrais... que nos cerceias, que nos atraiçoas, que nos violentas... que te impões por necessidade... ou pela paixão última, misto de atracção fatal e sereníssima entrega...

Já te odiei, muito, muito, Já te descompreendi, muito, muito. Já te temi, muito, muito (o temor é o maior factor de descompreensão, sabes...). Sei que terei sempre, enquanto me deixares viver, uma raiva incontida, um ciúme relapso, pelo teu assédio constante às pessoas que amo... Visceralmente. Mas, sabes...? o nosso romance, meu e teu, é um livro com princípio, determinantes, consequências... e fim. Uma história de suspense controlado, um suceder de capítulos interdependentes, um resvalar impreciso e anestesiante para o chão, para o pó, um livro de grossura imprevisível e relativa, que termina sempre, inevitavelmente, com um beijo de entrega.

Já compreendo porque te vou compreendendo melhor. Porque te vou perdoando, concedendo–me, porque te vou deixando instilares-te em mim, gota a gota, em homeopáticas dose de vida amarga...

Ainda vou acabar por querer-te, eu sei... devagarinho, na medida lenta da minha inutilidade, das minhas incapacidades funcionais, das minhas dores expoentes, do peso-morto do meu reflexo, nos olhos dos outros, das indiferenças que hão-de esgotar-me, simplesmente, como uma chama decrépita, que já não serve a luz de ninguém...

...ou, quem sabe, amar-te-ei de uma irresistível e urgente paixão, quem sabe...? - ninguém, porque o último capítulo, acredito, só a Vida o escreve, nem tu, Morte, o saberás... agora sei que te limitas a amar-nos, quando a vida nos despoja de Tudo. Ou a deixares que te amem, em final expiação de culpa. Ou de inocência.

Já compreendo que te vou perdoando, Morte.



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