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Carta à (minha) morte

 
Tags:  Cartas à minha vida  
 
Carta à (minha) morte

Já me afligiu muito sentir-te perto de alguém que amo – uma aflição de não compreender-te...? não!... não: é mais de não conseguir conceber o sorriso (mesmo se... ), o desprendimento (ainda que... ), a alegria (por vezes...), o amor (sempre), de quem te sabe próximo, por desígnio e lei. A entrega complacente.... a gratidão, iluminada por mais um ciclo de sol... a natural assumpção de um compromisso, quase o alívio mascarado de pressa de chegar, ou o descanso da cruz, mascarado de dor ostensivamente ignorada.

Leviana e infiel morte, que amas perdidamente, ao ponto de indiscriminares leitos, colos, estradas e instantes! Possessiva e cruel morte, que não respeitas paixões, nem amores, nem laços de sangue! Tanto nos cercas, tantos nos seduzes, tanto te insinuas, tanto nos atrais... que nos cerceias, que nos atraiçoas, que nos violentas... que te impões por necessidade... ou pela paixão última, misto de atracção fatal e sereníssima entrega...

Já te odiei, muito, muito, Já te descompreendi, muito, muito. Já te temi, muito, muito (o temor é o maior factor de descompreensão, sabes...). Sei que terei sempre, enquanto me deixares viver, uma raiva incontida, um ciúme relapso, pelo teu assédio constante às pessoas que amo... Visceralmente. Mas, sabes...? o nosso romance, meu e teu, é um livro com princípio, determinantes, consequências... e fim. Uma história de suspense controlado, um suceder de capítulos interdependentes, um resvalar impreciso e anestesiante para o chão, para o pó, um livro de grossura imprevisível e relativa, que termina sempre, inevitavelmente, com um beijo de entrega.

Já compreendo porque te vou compreendendo melhor. Porque te vou perdoando, concedendo–me, porque te vou deixando instilares-te em mim, gota a gota, em homeopáticas dose de vida amarga...

Ainda vou acabar por querer-te, eu sei... devagarinho, na medida lenta da minha inutilidade, das minhas incapacidades funcionais, das minhas dores expoentes, do peso-morto do meu reflexo, nos olhos dos outros, das indiferenças que hão-de esgotar-me, simplesmente, como uma chama decrépita, que já não serve a luz de ninguém...

...ou, quem sabe, amar-te-ei de uma irresistível e urgente paixão, quem sabe...? - ninguém, porque o último capítulo, acredito, só a Vida o escreve, nem tu, Morte, o saberás... agora sei que te limitas a amar-nos, quando a vida nos despoja de Tudo. Ou a deixares que te amem, em final expiação de culpa. Ou de inocência.

Já compreendo que te vou perdoando, Morte.


Teresa Teixeira


 
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Sterea
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1894
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/04/2013 09:51  Atualizado: 27/04/2013 09:52
 Re: Carta à (minha) morte
Chegando ao mundo sem saber de onde e partindo sem deixar endereço, deixando um rastro de saudade, cenas da vida.
Abraço de luz


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 27/04/2013 13:16  Atualizado: 27/04/2013 13:16
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 Re: Carta à (minha) morte
...dizia em conversa séria um célebre homem junto a um jovem como eu (já faz tempo, pois...)que a partir dos 40 é tema obrigatório, embora nem sempre extrospectivo...

o texto tem a marca d´agua da autora: limpza de escrita e reflexão profunda

bjs
arlindo


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/04/2013 15:10  Atualizado: 27/04/2013 15:10
 Re: Carta à (minha) morte
não há como dialogar com ela mas há como encher-lhe os ouvidos de desdém, ou de ódio, ou de amor. parabéns pelo belo texto.


Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 27/04/2013 16:06  Atualizado: 27/04/2013 16:06
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 Re: Carta à (minha) morte
A gente sente próxima quando vem,
mas que alívio quando parada,
só olha e vai embora.
Muito boa carta reflexão!
Bj


Enviado por Tópico
GELComposicoes
Publicado: 27/04/2013 16:22  Atualizado: 27/04/2013 16:22
Membro de honra
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 Re: Carta à (minha) morte
Que texto show!
Bom demais.
Sobre a morte, não quero papo com ela. E ela que se cuide. Melhor treinar muito com os outros antes de me encarar.
Abração.


Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 27/04/2013 17:27  Atualizado: 27/04/2013 17:30
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Mensagens: 2171
 Re: Carta à (minha) morte
Ao meu olhar uma Ode à morte, destemida expressão, porém respeitosa ao grande e ultimo evento de nossas vidas...Quanta sabedoria em seus versos.
"Ainda vou acabar por amar-te, eu sei... devagarinho, na medida lenta das indiferenças, das incapacidades, das dores, do peso-morto do meu reflexo, nos olhos dos outros, do esgotar-me, simplesmente, como uma chama decrépita, que já não serve a luz de ninguém..."

Sabe Teresa, penso que com a idade,vamos tentando decodificar esse grandioso mistério para poder aceita-lo, nem sempre nossa limitação nos permite,mas é inevitável esse questionamento.Eu particularmente já me perguntei se pode a morte ser poética rsrsrs.
Vou deixar aqui no cantinho meu pensamento.Fiquei encantada com seu maravilhoso texto de beleza e conteúdo, parabéns.


Poética é a morte por sentença, natural
É morrer de morte morrida.

Poético é morrer quando...
A máquina de seu corpo,
Completamente oxidada pelo tempo
Já não tem serventia, nem conserto algum.

Poético é morrer por não...
Querer lidar como o cansado tédio,
o total esgotamento do entusiasmo,
Já então, muito envelhecido e nem tão bem utilizado.

Poético é morrer quando...
O coração em comum acordo com o cérebro,
Exauridos da labuta, unem-se em pulsar e ânsia
Num definitivo, digno ultimo suspiro.

Poético é morrer quando...
A vaidade faz parceria com a morte, por não suportar
O declínio de um perecível corpo, vestido de uma pele fina
Desbotada, desidratada e plissada por rugas irreversíveis.

Poético é na ebriedade da morte
Sentir o cheiro das flores brancas,
O calor humano das velas acesas, em ultimas chamas
Flores e velas, companheiras de vida e morte.

Poético é pressentir sua chegada natural,
Na advertência de um ameno calafrio,
Sem temor algum, em reverência…
Num afetuoso sorriso de aceitação.

Poético é aceitar o percurso da vida
Como sendo o caminho lentamente suave,
Ao encontro do misterioso destino certo,à morte natural.
Qualquer outro tipo de morte é ultrajante!

Lufague