CARTA À MORTE (MINHA E DE TODOS NÓS)

Data 27/04/2013 17:20:43 | Tópico: Mensagens -> Desabafo


Prezada senhora:


Espero que esta vá encontrá-la gozando de péssima saúde assim como grande parte de seus clientes. O motivo destas minhas tão mal traçadas linhas é para perguntar quando a senhora vem.

Não que eu esteja com pressa receber sua visita, mas é que preciso deixar algumas coisas acertadas antes de partir desta para melhor. Sé é que haverá uma melhor, o que eu muito duvido e aposto.

Quero que saiba que preciso acertar umas prestações atrasadas do consorcio do carro que eu e a Jurema compramos. Um fusquinha amarelo, usado, em 60 parcelas. Já paguei a primeira e tem umas três atrasadas. Não quero deixar a Jurema a pé e por isso preciso saber.
A senhora pode até me dizer: - por que já não paga logo então? Ao que eu respondo, respeitosamente: a grana anda curta e estou vendendo o almoço para pagar a janta. Se cubro a cabeça descubro o pé, se é que a senhora me entende. Acho mesmo que não entende, por que não deve ter problemas financeiros e nem deve ligar muito para dinheiro já que leva ricos e pobres, sem perdão.

O caso é que estou devendo na farmácia, na padaria, no bar da esquina, no açougue e em outros lugares de gêneros de primeira necessidade. alguns de segunda necessidade e uns tantos outros de terceira, quarta e quinta. Graças, eu não pago mais aluguel. Tenho meu mocó, uma maloca que eu invadi com a Jurema e tomamos posse. Já fizemos um gato na força. Outro gato na TV a cabo sem contar do desvio da água.

O esgoto não teve jeito, não. Tive que botar um cano e soltar na rua mesmo. Sempre falo para a Jurema não comer coisa muito engordurada no sujinho do Mane Peloso por que tudo o que agente bate de barro na privada e depois que aperta a descarga, sai lá na rua e toda a vizinhança fica sabendo o que nos comemos. Em compensação, quando não sai água ou a água sai limpa, todos já sabem que nesse dia passamos fome.

Assim sendo, senhora morte, gostaria de propor para a senhora que fizesse de modo que eu pudesse pagar as 60 parcelas do fusquinha 86. Ai, depois, eu iria pagando devagar as outras dívidas ao final de tudo quitado, assim a senhora poderia vir até aqui e me levar.

Espero que não considere a minha proposta muito absurda, fique brava e venha me buscar antes do tempo.
Também quero dizer que não se deixe influenciar pelos pedidos da Jurema que de vez em quando diz: "por que morte não vem te buscar"? . Saiba que ela só está falando isso quando ficar muito brava comigo, o que acontece quando deixo a toalha molhada na cama ou a tampa do vaso aberta sem dar a descarga.

Sim, sou muito asseado. Tomo banho diariamente. Não tenho dinheiro para comprar desodorante, então, como moro perto de um supermercado, atravesso a rua, vou até a gôndola de desodorante e uso um que eu gosto. (Olha, se a senhora for comprar desodorante, pega aqueles lá do fundo, por que os da frente podem ser que alguém como eu já tenha usado).

Por favor, pense com carinho na minha proposta, quase uma súplica. Não estou pensando em mim e sim na Jurema, por que não quero deixar dividas para que ela pague e nem que ela seja conhecida como a viúva do caloteiro depois que eu bater as botas.
Saiba que se eu for agora, também vou ficar devendo na funerária.

Sem mais, despeço-me desejando boas colheitas e feliz regresso seja lá para onde for que a senhora volta e diga-se de passagem não quero mesmo saber e nem conhecer ao vivo.


seu criado atento


Sarcópio da Silva Soh (também conhecido como marido da Jurema)







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