Um homem com que me cruzei.

Data 14/04/2014 20:01:13 | Tópico: Crónicas

Assim encostado ao candeeiro, de olhar absorto no rasgão da camisa como que a cosê-lo com o olhar perdido. Ficou assim uns instantes e retomou a lenga-lenga:
- O “sôr” doutor não me dá uma moedinha? – Pediu-me numa fala ciciada pela falha dos dentes.
- E queres uma moeda para quê? – Perguntei-lhe num estereótipo rente à conversa da treta observando-lhe os fundilhos das calças carcomidas pelas noites não dormidas ao relento abraçado à pedra fria e cinzenta.
- Dê-me ao menos um cigarro “sôr” doutor para aquecer. – sem retorquir puxei da cigarreira e dei-lhe o cigarro para a mão.
– Tem lumes doutor? Pediu. Peguei no isqueiro e aproximei-o do cigarro preso nos lábios tisnados, ele colocou as mãos em concha e começou a puxar enquanto lhe observava as marcas da agulha nas veias secas das mãos, marca de sol poente que nunca foi de tardes quentes, invernoso e tardio.
Olhei-lhe calado os olhos azuis profundos e encovados num crânio prenunciado pela magreza.
Olhei fundo e ignorei a moldura decrépita e vislumbrei o menino, bebé de faces rosadas, horas depois de nascer num vagido enternecedor ao colo da mãe. Vi os sonhos da mãe, os vislumbres de um futuro radioso que todas as mães sentem nas horas prenhes de felicidade num choro contido de alegria. Um amor de madrugadas perfumadas pela lavanda do seio que o alimentou.
Baixou os olhos como que percebendo o que pensava, perdeu de novo o olhar pela camisa retinta de sujidade e começou o seu caminhar trôpego rente aos carros estacionados, rente à felicidade.



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