
O que importa quando os deuses morrem (Moacyr Félix)
Data 23/12/2014 19:53:50 | Tópico: Poemas -> Reflexão
|  Navega em mim um pôr-do-sol tristonho. No azul do mar, no entanto, que o não deixe escurecer as bússolas do sonho.
Com o envelhecido sal dos jovens mastros farei verdades cor de fogo. E um feixe de longos deuses mortos é o meu lastro
quando escafandro o tempo entre os rochedos e as solidões enormes vão parindo futuros que não tenho e a morte cedo.
Morrer os deuses, sim, é o duro encargo de um coração desnudo entreabrindo as bocas de um pensar em golfo amargo.
Quem reza aos deuses sobre a terra agora? Na etérea praia dos altos esqueletos que mãos ofertam lírios nesta hora?
De que vale cavar no abismo a prece, se o frio e a fome alongam sobre os tetos as tardes magras onde amor se esquece?!
Que deuses nos restaram, nem sabemos: fragílima, a lei do esforço humano se desfazendo se refaz nos remos
de mais um outro esforço, mais um rumo a perseguir estrelas no oceano. E assim tão frágeis somos o consumo
das estações e dos amores. — Quem dos fins do tempo arranca um tempo novo e a doce flauta orquestra muito além
daquilo que é a tristeza ou a dor de um homem? Que nos faz esperar em meio ao povo? Vida, eu queimo os deuses em teu nome
pois sei que o antigo deus maior é a fome que tu mesma criaste e nos consome no duro ofício de inventar a hora.
Se o evento é breve, se chega sem demora ou tarda muito a vir, pouco isto importa! O importante é sabê-lo desde agora
nas várzeas fundas onde a luz é morta e o mistério mais belo é o de uma aurora subterrânea, exata e dolorosa
na Utopia que do porvir nos glosa.
Moacyr Félix, poema dedicado a Geir Campos e Alcinda. In: Singular Plural, Ed. Civilização Brasileira, 1998, RJ.
Imagem: René Magritte - The Therapist.
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