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O que importa quando os deuses morrem (Moacyr Félix)

 
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Navega em mim um pôr-do-sol tristonho.
No azul do mar, no entanto, que o não deixe
escurecer as bússolas do sonho.

Com o envelhecido sal dos jovens mastros
farei verdades cor de fogo. E um feixe
de longos deuses mortos é o meu lastro

quando escafandro o tempo entre os rochedos
e as solidões enormes vão parindo
futuros que não tenho e a morte cedo.

Morrer os deuses, sim, é o duro encargo
de um coração desnudo entreabrindo
as bocas de um pensar em golfo amargo.

Quem reza aos deuses sobre a terra agora?
Na etérea praia dos altos esqueletos
que mãos ofertam lírios nesta hora?

De que vale cavar no abismo a prece,
se o frio e a fome alongam sobre os tetos
as tardes magras onde amor se esquece?!

Que deuses nos restaram, nem sabemos:
fragílima, a lei do esforço humano
se desfazendo se refaz nos remos

de mais um outro esforço, mais um rumo
a perseguir estrelas no oceano.
E assim tão frágeis somos o consumo

das estações e dos amores. — Quem
dos fins do tempo arranca um tempo novo
e a doce flauta orquestra muito além

daquilo que é a tristeza ou a dor de um homem?
Que nos faz esperar em meio ao povo?
Vida, eu queimo os deuses em teu nome

pois sei que o antigo deus maior é a fome
que tu mesma criaste e nos consome
no duro ofício de inventar a hora.

Se o evento é breve, se chega sem demora
ou tarda muito a vir, pouco isto importa!
O importante é sabê-lo desde agora

nas várzeas fundas onde a luz é morta
e o mistério mais belo é o de uma aurora
subterrânea, exata e dolorosa

na Utopia que do porvir nos glosa.


Moacyr Félix, poema dedicado a Geir Campos e Alcinda. In: Singular Plural, Ed. Civilização Brasileira, 1998, RJ.

Imagem: René Magritte - The Therapist.
 
Autor
AjAraujo
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