Beijo na boca

Data 31/08/2017 01:13:46 | Tópico: Textos -> Outros

Já nem às gaivotas confio a minha imponderável inveja de voar (asas são penas). Nem às pombas - do meu pedacinho de chão, vejo tantas gaivotas famintas, tantas pombas esventradas!...
Felizes são as nuvens que voam sem saber de penas, de fomes, de sedes e de fronteiras. E sabem, do sangue, só reminiscências púrpuras, que o sol cadente às vezes lhes deixa na levíssima textura da sua transparência. Felizes são os instantes em que os meus olhos são todo o azul do céu, e a minha inspiração venial, o meu humano ponto de desequilíbrio - apenas pequenos milagres que nunca saberei agradecer.
Deixem-me escrever. Deixem-me ter a capacidade de ver com as palavras, de as usar como uso a polpa dos meus dedos, ou como capacidade infinita de experimentar, ou como ousadia de artefacto primitivo, que invento para percorrer a superfície das coisas visíveis e invisíveis. Deixem-me eternizar a impressão fugaz da felicidade. Deixem-me escrever. Porque os olhos esquecem depressa. Porque a boca é um beijo que o vento rouba à traição.


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