O DIA EM QUE VINÍCIUS DE MORAIS CANTOU EM TRÊS CORAÇÕES

Data 15/11/2017 22:47:04 | Tópico: Crónicas

Houve uma época que queria ser Vinicius de Morais. Era o homem que vivia a poesia integralmente. Essa minha crise de identidade também se estendeu a John Lennon. Mas aconteceu primeiro com Vinicius.
E Vinicius foi a Três Corações, minha cidade natal. O ano? 1976. Ainda em plena ditatura. Onde? No cinema da EsSA, dentro do quartel – até hoje o único teatro da cidade. Os músicos: o violão do Toquinho, um baixista (não lembro o nome) e o baterista-compositor Mutinho (muito elogiado por Tom Jobim). Toquinho estava de cabelos longos (como era comum na época).

Antes de Vinicius, levaram para o palco um carrinho com uma garrafa de whisky, copo e um baldinho de gelo – como se fosse uma anunciação – uma certeza de que o poeta entraria em cena. Diziam, que além da voz, o whisky era o seu outro instrumento.
Quando Vinicius surgiu e se acomodou diante da mesinha, tive a impressão de que uma luz escura se abatera sobre o poeta. Estava lá o artista com os seus pecados, seus amores rompidos, suas idas e vindas. Ali estava um homem erudito, mas que carregava todo o peso e a experiência de histórias e desencontros.

Mas o show transcorreu leve. Os sucessos se seguiram: Regra Três, Pela Luz dos Olhos Teus, Tarde em Itapoã, Testamento, Gente humilde, Samba da Bênção, Samba da Volta, Sei Lá a Vida tem Sempre Razão e muitas outras.

Como já falei, era tempo de ditadura. E o show foi num quartel do exército. E eu sabia que o Samba de Orly (parceria com Chico Buarque e Toquinho) tinha duas versões, uma delas autorizada pela censura: “Vai meu irmão /pega esse avião / você tem razão de fugir assim / desse frio / mas veja o meu Rio de Janeiro / antes que um aventureiro lance mão. Pede perdão, pela duração dessa temporada” –. E a versão não autorizada dizia tudo igualzinho com a exceção que concluía diferente: “Pede perdão pela omissão, um tanto forçada” – que se referia ao exílio no exterior que muitos artistas foram obrigados para não serem presos no Brasil.

No ar, uma tensão quando chegou o momento de cantar o verso. Naquela época não havia a liberdade que hoje temos para falarmos ou postarmos na internet o que quisermos. A menor crítica ou provocação ao regime poderia render repressão, prisão ou até tortura. Mas Vinicius não se intimidou. E lascou com todas as sílabas em bom som, a versão proibida: “Pede perdão pela omissão, um tanto forçada”. O poeta deu o seu recado. Saímos do show com a alma lavada.



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