A "ourificação" da beleza

Data 16/05/2018 22:33:47 | Tópico: Crónicas

Se há dias em que nada é belo, outros há em que, após o lavar do cascalho, o ouro brilha no fundo. Só que quando o assunto são seres humanos, é difícil "ourificar" personalidades sem esbarrar com as impurezas do existencialismo. Todavia, como normalmente só isolamos os comportamentos-avistados, descobrimos que afinal estamos sob uma chuva-de-diamantes. Não, não estamos à superfície de Neptuno para que os diamantes caiam literalmente do céu. A preciosidade das boas-intenções e das generosidades é que afloram facilmente por toda a parte (na Terra ou nestas terras); mas sempre como a ponta de um iceberg fora de água. Isto é, falta o resto basilar da estrutura para completar o quadro e perceber-se qual o valor intrínseco da multidão circundante. Por outro lado, muito mais fácil é "ourificar" a corporalidade das expressões humanas: são belas, quase todas.

O desejo procriador estará com certeza na base de quase toda a beleza que flui dos corpos (humanos, pelo menos). E hoje foi particularmente um bom dia de belas fêmeas avistadas. Duas, para ser exacto. A primeira, sentada no banco do jardim, de tão morena e vistosa mostrou porte de rainha; e não, não me peçam para explicar o que é isto de rainha (ou o que significa este cliché). Não sei, talvez fosse pelas costas aprumadas de bailarina, da roupa, das pernas cruzadas, do cigarro escondido que levou à boca. Sei lá. Ou então, pela maneira como flagrou os meus pensamentos postos nela: revirou os olhos de baixo para cima numa lentidão atroz, de tal maneira que não tive o reflexo de olhar para o lado. Conclusão: apanhou-me e riu-se. Ou melhor, a mim pareceu-me ter visto um sorriso. Acho, porém, que foi um truque da minha vaidade. Quanto à outra - uma fêmea ucraniana que serve à mesa de um café -, observei cada curva daquelas coxas apertadas contra as calças. O porte talvez não fosse de rainha, mas o apelo procriador daquelas carnes brancas torneadas deixou bem claro o poder da beleza expressa (e avistada).

Entretanto, quando o assunto não são seres-humanos tudo fica menos difícil, porque "ourificar" a Natureza sem o desejo procriador é simples e pacificador (quando para aí estamos virados, claro). Neste caso, entramos somente no domínio da contemplação, num processo que é averso ao possessismo. E se estamos propícios à osmótica qualidade do desapego, estamos sem o constante vibrar da insatisfação que, sob a alçada de uma suposta paz exasperante, perdura; mas desgasta as articulações da sanidade mental. Daí que objectivar e realizar seja, do senso-comum, a regra mais eficaz para preservar o equílibrio entre as aflições e os regalos. Ora, procriar é um objectivo da espécie humana (e não só). E é um objectivo que comporta outros objectivos para que se possa, por último, fazer cumprir. Senão vejamos: objectivos profissionais, amorosos e mesmo aqueles de puro prazer imediato redundam numa única coisa: perpetuar qualquer coisa (a beleza, se possível for).

E perpetuar combina bem com a Primavera que daqui a pouco bate à porta. Combina porque as belezas começam a mudar. E o tempo molda ciclicamente as formas, as cores e os odores do cenário envolvente; ao mesmo tempo que também molda, ciclicamente e irreversivelmente, cada criatura-viva. Por exemplo, um corte de cabelo provoca uma alteração temporária (ou cíclica) e, por isso, é um estado de beleza intercalada; enquanto que envelhecer é irreversível (por enquanto) e, só por isso, é um estado de alteração contínua da beleza. Depois, ainda existem as polimorfologias que se repetem sazonalmente, como acontece com o guincho, que aliás já começa a exibir leves indícios da sua plumagem nupcial. O guincho (tal como o pombo) não é metamórfico como a borboleta, e também não tem a exuberância das aves-do-paraíso. É que tanto o guincho como o pombo são apenas animais de simples costumes que proliferam junto ao estuário da minha terra. De qualquer maneira, de peito inflado e pescoço eriçado, lá vai o pombo a debicar o traseiro (que foge-e-não-foge) da pomba. Já o guincho tenta esconder mais o jogo, mas começa a ser traído pela carapuça castanha que se vai enfiando pela cabeça. Enfim, está a trocar a palidez das faces pelo bronzeamento do costume. É que as fêmeas (e o mundo) andam por aí, e é preciso beleza feita (ou "ourificada") para criar (ou para procriar) mais beleza.


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