
DESCONHECIDO
Data 30/01/2019 01:16:19 | Tópico: Poemas
| DESCONHECIDO
"Se existir um Deus ele terá que implorar pelo meu perdão."
Grafite no campo de Mauthausen-Gusen ¹
Deus - o desconhecido² ou qualquer um - Há mais de dois mil anos não é visto Sem nunca visitar lugar algum. Embora ausente desde Jesus Cristo, Havendo-O por geral lugar-comum, Maior nosso abandono em face d'isto: Com silêncios responde os nosso gritos, Vagando pelos amplos infinitos…
Todavia, em memória dos caídos, Uma vez mais recorde-se, por real, A história esquecida de vencidos, Em desespero face ao puro mal… Um - entre outros milhões desconhecidos - Nos seja o herói de todos no final, Quando posteridade se concede A alguns grafites seus pela parede:
Era em vagões de gado abarrotados Que se chegava ao campo de extermínio. Todos os dias, diante dos soldados, Na pedreira o execrável tirocínio De carregar granitos tão pesados, Quanto os horrores contados desde Plínio³. Onde novos Germânicos com Ciência, Excedendo os Romanos em violência!…
Havia, com efeito, essas jazidas D'onde extraíam blocos de granito, Mas, mais que as rochas, eram as vidas D'aqueles que clamavam ao Infinito Que viam nos trabalhos exauridas… Porquanto, a minerar o monolito, Em subir e descer sob olhos maus, Mais da escada da morte seus degraus.
Eram como formigas carregando Os blocos do rochedo escada acima. Entre os degraus, os passos vacilando, Apenas um sobre o outro mais se arrima Dos blocos que rolavam vez em quando E esmagavam a quem caísse em cima… Com muitos perecendo pela escada, Que por isso da morte era chamada.
Vez ou outra, d'exaustão, alguém caía Derrubando os que vinham logo atrás. A diversão dos guardas consistia Em ver quantos morrendo em quedas más! Sádicos, vêm contar ao fim do dia Aqueles que deixando paus e pás Já sobre o nada tendo olhos absortos Jaziam entre as rochas semimortos.
Um aos alojamentos, entretanto, Retornando da faina em hora incerta, Ao contrário da placa do recanto, Percebe que o trabalho não liberta -4 Nada pode senão gizar n'um canto Da parede esta triste descoberta… "'Inda que sobre as pedras sobreviva Não há pessoa ali que saia viva!"
E, citando o salmista sem porvir: "Senhor Deus, por que vós me abandonastes?" -5 Escreve o que não se ousava repetir… Ao lado, contra as suásticas nas hastes: "Dobrar (a verdade) é igual mentir" Citava o velho verso sem contrastes D'um bom poeta anarquista e pacifista, -6 Caído n'outro cárcere hitlerista…
Sobre a última parede ele, porém, Descreve em letras grandes, desvalido, A sua desgraça como lhe convém Sem sua assinatura, para o Olvido, Na qual ao próprio Deus culpa também, Certo em permanecer desconhecido. Eis: "Se existir um Deus" - - escreve então - - Terá que me implorar por meu perdão!"¹.
Quando Aliados chegaram ao lugar, Avançando pela Áustria devastada, Custaram eles mesmos a aceitar O relato brutal d'aquela escada Pela qual se matava a trabalhar. - Ou melhor, se morria na jornada… - Não creriam não fosse os resgatados Testemunhando tudo aos soldados.
Aliás, o odor nauseante dos defuntos E as pilhas de cadáveres vertidas Demonstravam a morte nos conjuntos De prédios, oficinas e jazidas Onde homens padeceram anos juntos A vida mais terrível d'entre as vidas, Visto vivida face a face à morte, Que omnipresente ali fez sua corte.
Por dias, os horrores monstruosos Revelam-se um inferno tal-e-qual, Parecendo antes obra de raivosos, Que alguma humanidade racional. Métodos que demonstram, criteriosos, A mais perversa lógica do mal: Onde se fabricava a morte em série, Mais matava o trabalho que a intempérie.
E a esperança que ecoa n'alma humana Mais parece perder do que salvar Na teimosia do escravo que s'engana E crê que se liberta a trabalhar…-4 Tão-somente se adia outra hora insana, Na qual entre morrer e se matar Decide uma outra vez subir a escada Ou conhecer dos mortos a morada.
Os Aliados, afinal chegam à cela Na qual o nosso herói marcou presença Escrevendo à parede, incerta tela, Com Deus a sua humana desavença. Quem antes de morrer se nos revela O tamanho d'uma alma tão imensa Que, a exigir do Senhor consolação, Mais merecera d'Ele ouvir: - "Perdão!"
Belo Horizonte - 29 01 2019
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Autor desconhecido. Grafite encontrado em 1945 com mais outros dois n’uma cela do cárcere do campo de Mauthausen ²- At 17:23 ³- Plínio, o velho (23–78 d.C). Historiador e naturalista romano. 4-”Arbeit macht frei” é uma frase em alemão que significa “o trabalho liberta”. A expressão é conhecida por ter sido colocada nas entradas de vários campos de extermínio do regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial, 5- Salmo 21:2 e Mateus 27:43 6- Erich Mühsam, in “O prisioneiro” / Der Gefangene: August 1919 http://www.gedichte.eu/ex/muehsam/brennende-erde/der-gefangene.php
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