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DESCONHECIDO

 
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DESCONHECIDO

"Se existir um Deus ele terá que implorar pelo meu perdão."

 Grafite no campo de Mauthausen-Gusen ¹

Deus - o desconhecido² ou qualquer um - 
Há mais de dois mil anos não é visto
Sem nunca visitar lugar algum.
Embora ausente desde Jesus Cristo,
Havendo-O por geral lugar-comum,
Maior nosso abandono em face d'isto:
Com silêncios responde os nosso gritos,
Vagando pelos amplos infinitos…

Todavia, em memória dos caídos,
Uma vez mais recorde-se, por real,
A história esquecida de vencidos,
Em desespero face ao puro mal…
Um -  entre outros milhões desconhecidos - 
Nos seja o herói de todos no final,
Quando posteridade se concede
A alguns grafites seus pela parede:

Era em vagões de gado abarrotados
Que se chegava ao campo de extermínio.
Todos os dias, diante dos soldados,
Na pedreira o execrável tirocínio
De carregar granitos tão pesados,
Quanto os horrores contados desde Plínio³.
Onde novos Germânicos com Ciência,
Excedendo os Romanos em violência!…

Havia, com efeito, essas jazidas
D'onde extraíam blocos de granito,
Mas, mais que as rochas, eram as vidas
D'aqueles que clamavam ao Infinito
Que viam nos trabalhos exauridas…
Porquanto, a minerar o monolito,
Em subir e descer sob olhos maus,
Mais da escada da morte seus degraus.

Eram como formigas carregando
Os blocos do rochedo escada acima.
Entre os degraus, os passos vacilando,
Apenas um sobre o outro mais se arrima
Dos blocos que rolavam vez em quando
E esmagavam a quem caísse em cima…
Com muitos perecendo pela escada,
Que por isso da morte era chamada.

Vez ou outra, d'exaustão, alguém caía
Derrubando os que vinham logo atrás.
A diversão dos guardas consistia
Em ver quantos morrendo em quedas más!
Sádicos, vêm contar ao fim do dia
Aqueles que deixando paus e pás
Já sobre o nada tendo olhos absortos
Jaziam entre as rochas semimortos.

Um aos alojamentos, entretanto,
Retornando da faina em hora incerta,
Ao contrário da placa do recanto,
Percebe que o trabalho não liberta -4
Nada pode senão gizar n'um canto
Da parede esta triste descoberta…
"'Inda que sobre as pedras sobreviva
Não há pessoa ali que saia viva!"

E, citando o salmista sem porvir:
 "Senhor Deus, por que vós me abandonastes?" -5 
Escreve o que não se ousava repetir…
Ao lado, contra as suásticas nas hastes:
 "Dobrar (a verdade) é igual mentir" 
Citava o velho verso sem contrastes
D'um bom poeta anarquista e pacifista, -6
Caído n'outro cárcere hitlerista…

Sobre a última parede ele, porém, 
Descreve em letras grandes, desvalido,
A sua desgraça como lhe convém
Sem sua assinatura, para o Olvido,
Na qual ao próprio Deus culpa também,
Certo em permanecer desconhecido.
Eis: "Se existir um Deus" - -  escreve então - - 
Terá que me implorar por meu perdão!"¹.

Quando Aliados chegaram ao lugar,
Avançando pela Áustria devastada,
Custaram eles mesmos a aceitar
O relato brutal d'aquela escada
Pela qual se matava a trabalhar.
 - Ou melhor, se morria na jornada… - 
Não creriam não fosse os resgatados
Testemunhando tudo aos soldados.

Aliás, o odor nauseante dos defuntos
E as pilhas de cadáveres vertidas
Demonstravam a morte nos conjuntos
De prédios, oficinas e jazidas
Onde homens padeceram anos juntos
A vida mais terrível d'entre as vidas,
Visto vivida face a face à morte,
Que omnipresente ali fez sua corte.

Por dias, os horrores monstruosos
Revelam-se um inferno tal-e-qual,
Parecendo antes obra de raivosos,
Que alguma humanidade racional.
Métodos que demonstram, criteriosos,
A mais perversa lógica do mal:
Onde se fabricava a morte em série,
Mais matava o trabalho que a intempérie.

E a esperança que ecoa n'alma humana
Mais parece perder do que salvar
Na teimosia do escravo que s'engana
E crê que se liberta a trabalhar…-4
Tão-somente se adia outra hora insana,
Na qual entre morrer e se matar
Decide uma outra vez subir a escada
Ou conhecer dos mortos a morada.

Os Aliados, afinal chegam à cela
Na qual o nosso herói marcou presença
Escrevendo à parede, incerta tela,
Com Deus a sua humana desavença.
Quem antes de morrer se nos revela
O tamanho d'uma alma tão imensa
Que, a exigir do Senhor consolação,
Mais merecera d'Ele ouvir: - "Perdão!"

Belo Horizonte - 29 01 2019

* * *

Autor desconhecido. Grafite encontrado em 1945 com mais outros dois n’uma cela do cárcere do campo de Mauthausen
²- At 17:23
³- Plínio, o velho (23–78 d.C). Historiador e naturalista romano.
4-”Arbeit macht frei” é uma frase em alemão que significa “o trabalho liberta”. A expressão é conhecida por ter sido colocada nas entradas de vários campos de extermínio do regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial,
5- Salmo 21:2 e Mateus 27:43
6- Erich Mühsam, in “O prisioneiro” / Der Gefangene: August 1919
http://www.gedichte.eu/ex/muehsam/brennende-erde/der-gefangene.php

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Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 30/01/2019 17:37  Atualizado: 30/01/2019 17:37
 Re: DESCONHECIDO para os "justiceiros" de hoje
é muito fácil culpar Deus por coisas que nós, humanos, fazemos(ou deixamos de fazer).
vocês, ateus ou seja-lá-que-diabos-vocês-forem sempre usam essa mesma ladaínha mediocre e covarde de sempre.
Não que o manifesto contrário às coisas horríveis da história não sejam pertinentes à indignação, mas.. daí a culpar a Deus por todo o mal que assola a terra desde sempre é a mesma burrice paginada(e covarde, eu já disse) de sempre.
LIVRE ARBÍTRIO!!!
Não fosse isso, e Ele nos faria ama-lo sem contestações em qualquer parte do mundo!
Falam dos horrores da segunda guerra, mas esquecem-se de todo o horror que caminha entre nós.. vide países do continente africano, no oriente médio, em muitos lugares(até mesmo aqui, no Brasil, na Venezuela..)
e vão culpar a Deus?
vão culpar Aquele que lhes deu a liberdade de gerir o seu próprio caminho, conforme à sua(nossa) vontade?
ao invés de virem com essa calhordice, deveriam promulgar o assentamento humano perante aos erros que vocês/nós mesmos, cometemos.
Se o Ted Bundy matou dezenas de pessoas, então a culpa é única e exclusiva dele e não da divindade.. Se Hitler fez o quê fez, não foi por causa da incompetência dos anjos e etc.. Mas da burrice, da maldade que carregamos desde os primeiros homens(vide Caim e Abel).
Talvez, há muito tempo atrás, Deus ainda intervisse nas nossas escolhas e direções, mas depois do dilúvio, Ele desistiu. (falando de acordo com a crença, claro).
Vocês, ateus, homossexuais enrustidos e/ou abertos, detentores da medíocre farda dos "bons", retardados e afins, poderiam subjugar os seus iguais e não colocar a culpa em Quem não se defende entre si.
Vociferando aos céus e denegrindo a imagem Dele, lhes tornam um bando de adoradores do diabo.. Vão lá, fdps! vão lá pedir ajuda ao Lúcifer e cia.. Já que Deus não lhes servem, vão pedir ajuda à alguma outra entidade espiritual para as respostas de suas questões de merda! quem sabe assim, vocês(malditos) não evoluem, afinal?
Ao passo que,
se fosse necessário mesmo, então haveria um segundo dilúvio para acabar com todos os "benfeitores mal-agradecidos" que tanto clamam por "justiça"!
Os únicos culpados por cada merda que acontece, somos nós mesmos! e negar isso, é a mais completa estupidez, já existente.




putaque(os)pariu!




ps: e ainda querem que Deus, Aquele que fez todas as coisas venha e lhes peça "perdão"..
isso só não mais ridículo que vocês, mesmos!

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