O Pó no Tarrafal

Data 25/04/2020 07:33:14 | Tópico: Crónicas

Até há uns dias, para mim o Tarrafal era uma freguesia do concelho de Oeiras.
Hoje chego à conclusão de que não sei o que é a liberdade. Sei isso, porque nunca soube o que é ser não-livre, ou não ser livre, escolham.
Por esta altura, e se forem portugueses, já devem ter a pálida ideia da década em que nasci, ainda que pouco importe.
Antes que isto fique lamechas, vou mandar as minhas caralhadas do costume sempre que apareço. Digamos que o confinamento, ou seja, o tão fofinho “isolamento social”, dá para estas merdas. Os meus filhos (o casal) começam-se a sentir presos.
O pó é um perigo. Nesta quadra, a expressão “nem pó” tem tido um renovado valor ao meu espelho. Varrer o pó por exemplo, da última vez que foi feito por estas mãos, deram-me sintomatologia (tão na moda) Covid-19 (outra), uma sensação de peso no peito e dificuldade respiratória. Havia muito pó nas divisões que ganharam pessoa de cela para os meus descendentes, quando têm passado a semana comigo e não com a sua mãe.
Ver a descrição do que é o pó na google (obrigado, mais uma vez), é um tratado científico. Aconselho.
O que me fode nas prisões, não é tanto a cela, ou as grades ou aquele gajo que me olha com uns olhos de fome. O presídio em si tem uma arquitectura não muito díspar de um bloco de apartamentos. As portas são um pouco diferentes, não têm chave. A dor é a desorganização do tempo. Da obediência quase total ao espaço. O código de conduta espaçado.
O céu está pouco nublado ou limpo.
Não há lugar para indecisões. Tudo é limites. Como respiras, o que respiras, primeiro o pé direito depois o pé esquerdo, mais ou menos noventa centímetros. Não! São mesmo os noventa e dois.
Parece que estou a ler o 1984.
Agora é a hora do “minuto do ódio” precisamente na “semana do ódio”.

A vida tem ensinado ao Homem (complicado quando a palavra ligada a ser-humano, humano é um adjectivo, mas também um nome) que a vida sem regras leva à extinção. Assim nasceram as sociedades ditatoriais (desde as monarquias absolutistas ao comunismo), assim nasceram as religiões monoteístas, nasceram as leis, nasceu o pensamento. É muito nascimento junto.
Subitamente choramos, como num grito, que significa vida e pulmões.
Demasiado encolhido, um acordeão não toca.
Assim é ser livre. Um acordeão que abre e fecha.

Assim que enviar esta crónica para há cinquenta anos atrás, sei que amanhã, algum senhor da PIDE virá bater à minha porta.
Com a tortura do sono vou confessar o que ele quiser, leve eu o tempo que levar. Pesado de loucura. Uma visita guiada a Caxias. Depois, ao Tarrafal.

Por isso é que em 2019, quando algum senhor mais velho, farto de marginalidade e criminalidade e cheio de racismo, intolerância, mas sobretudo medo, diz que isto devia voltar ao antigamente, que antes nada disto havia, não sei se se refere à fome no interior, que levou à imigração de tantos para a França, ou para o Luxemburgo, ou a quarta classe da maioria da população, a falta de infraestruturas, ou os pensadores exilados. Devia ser uma ovelha do sistema, Caxias não era com ele.

Comprei uma televisão. Tem a RTP.
Durante o noticiário que descreve as entranhas do Covid-19 tenho mudado de canal, uso um telecomando (também tenho o direito a ser, de vez em quando, ditador).
Pelas 20h30, na Culta e Adulta passa uma série tipo “morangos com açúcar” chamada Merlin, que é em catalão.
Não aconselho. Tenho gostado.
Reparei, por exemplo, que afinal é tão diferente do castelhano como o português.
Rés, por exemplo, é nada.
Pó é medo.
Afinal, já quero que sejam independentes. E livres.

Enquanto ouço “Os meninos do Huambo” do Paulo de Carvalho, ponho na minha Playlist do Spotify a “Pedra Filosofal” do Manuel Freire, e o “Quis saber quem sou”, aliás "E depois do adeus".

Afinal, o Tarrafal é no arquipélago de Cabo Verde e era chamado, na época, pelo “campo da morte lenta”, acho que em alemão diz-se Auschwitz.


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