A César o que é de César

Data 16/05/2020 05:39:13 | Tópico: Poemas

O Luso-Poemas ficou mais pobre.
O autor de maior qualidade que já tive oportunidade de ler nestas paragens decidiu não mais contribuir connosco.

Boxer é um exímio escritor, os seus poemas tem um português invejável, uma prosa poética cheia de referências e figuras de estilo que me fazem inveja.
Há muito que sou um comentador dos seus textos (tanta poesia de qualidade que tivemos de borla) e não fosse tão fraca a minha memória poderia passar as próximas tardes a dar exemplos do que me estou a referir.
Como comentador, é duma sagacidade impar, de um olhar clínico que sabe ver, como foi recentemente, uma maçã num mação.
Também a sua simpatia vai deixar saudades, assim como a hombridade, a decência.
Lembro-me sempre dum comentário ácido que me fez a um poema sobre sorrisos que me fez responder em PM e da humildade que demonstrou ao ler a minha resposta.

Porque é um Homem, também decidiu, em confinamento, lutar por esta causa que o deve incomodar como a mim.

A vergonha que a Leonor sente, eu também sinto, e espero que ele tenha a decência de voltar atrás com esta decisão, ou que volte, com outro nome, para termos o prazer de o ler.

Abraço caríssimo irmão de letras

PS1.: Este texto é também um comentário meu à segunda publicação do POR.UM.LUSO.MELHOR

PS2.: Para dar exemplo da sua qualidade enquanto pensador, uma vez que não é um poema, resolvi enviar em Nota de autor um escrito do Boxer a um dos meus, o "hálito da espera", passo a publicidade...
No livro do Génesis, o hálito divino é a origem do Homem: "Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente."
Mais tarde, entre os gregos, a alma era vista como uma porção de ar, que partira do éter e a ele regressaria na hora da morte. Há até relatos de quem conseguiu ver o ar expelido pela boca dos mortos no momento do óbito.
A associação do hálito à vida é, portanto, algo quase natural e comum a várias civilizações humanas.

Neste poema, essa ligação começa por residir em três metáforas: a nuvem, a pluma e o sorriso. As três combinam-se numa imagem comum: a de algo que pode nascer vívido e fulgurante para, mais tarde, se revelar frágil e transitório.
A nuvem, que pode tomar todas as formas dos sonhos e que depois desaparece com a brisa...
A pluma, que representa a beleza das aves e que se converte em algo tão fútil quanto a pena de um chapéu ou um marcador esquecido num livro...
O sorriso, símbolo ambivalente da alegria/tristeza/escárnio...

A meu ver, no verso seguinte -- "o ar do ar preso" -- começa a segunda parte do texto, em que a ideia de prisão vem introduzir a mais bela estrofe do poema: "tem o corpo do arvoredo / por podar / e o toque liso dum abraço / prenhe de mãos e dedos".
Como interpretar estas duas ideias que aparecem ligadas pela copulativa? Algo que cresce e que precisa de ser cortado e um abraço de "toque liso"?
A minha leitura leva-me à insurreição dos corpos que não se deixam cercear pelos constrangimentos da sua frágil condição e que procuram ligações, cheias de sonhos e anseios, mesmo que tenham de se cingir ao "toque liso", a uma verticalidade das relações, que se desejariam circulares como um abraço.

Reflexos de um mundo em confinamento? Não sei. Talvez seja demasiado literal.
Independentemente de qual tenha sido o móbil da escrita, há aqui algo que encontro em outros poemas do Rogério: a presença constante de elementos primordiais (ar, fogo, terra, água -- a que juntaria a luz) que são a chave de leitura para o lado mais desconhecido e encantatório dos sentimentos humanos.

Um grande abraço, meu irmão.




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